O Sacerdote Contador

Com a compra e venda de escravos em alta no século XIX, poderia, para os mais espertos, não ser a coisa mais difícil do mundo enriquecer no Brasil. Principalmente àqueles que viveram nisso, como foi o caso de Pai Velho, trazido para o recôncavo baiano como cativo da fazenda de um barão cujo nome tem total irrelevância para a nossa história.

Mas o caso é que Pai Velho, sacerdote africano, começou a trabalhar com o transporte de açúcar da fazenda até o porto e viu nisto uma grande oportunidade de ganho com compra e venda de produtos que chegavam dos navios. Iniciou a carreira como sócio do liberto Estevão, que lhe proporcionou os primeiros subsídios para a entrada no negócio.

E logo o cativo pôde comprar a sua liberdade e com um dinheiro que sobrou, alugou uma loja, local onde dormia e trabalhava. Assim, quando o talento é nato e o sujeito esperto, o negócio só tende a crescer e a pequena lojinha ganhou um quarteirão de espaço e uma imensa variedade de produtos. Numa sala ao lado, o Pai fazia seus atendimentos e mantinha uma biblioteca onde passava muito tempo estudando assuntos diversos.

Mesmo com duas filiais muito grandes, Pai Velho queria mais e numa conversa com um inglês, fechou negócio para umas peças africanas e comprou um galpão perto do cais. Ninguém poderia imaginar que, de certa forma, o ex cativo estava a um passo de virar um herói.

E se atrás de todo grande homem existe uma grande mulher, não podia ser diferente com o Pai que conheceu Isabelle, uma francesa artista plástica que morava em uma casinha ao lado da sua primeira loja na praça da Sé, na cidade de Salvador, ou cidade da Bahia.

Isabelle foi o maior amor que alguém poderia ter na caótica Bahia de 1853. Não precisou qualquer mandinga do sacerdote para que os destinos se unissem. O Pai, já respeitado pelos homens de negócios e pelos escravos de ganho que passavam por ali e buscavam algum atendimento dele, e Isabelle, uma dama bonita e elegante que pintava e passou a pintar para os senhores e comerciantes da região, formavam o casal perfeito.

Mas o que ninguém sabe é o fato de a francesa não gostar do negócio mais rentável do marido: o tráfico de escravos para o sul do Brasil. Já se tornavam raros os navios que traziam cativos para Salvador e os da região tinham que ir para as plantações de café do sul e sudeste, fazendo deste um negócio bem lucrativo.

E nem o maior amor que a Bahia poderia ver o faria desistir do ofício. E ele sempre a ganhava daquela forma os amantes se ganham. Até ela esquecer o assunto, que quando voltava tinha o mesmo tratamento. Isabelle não teve muito tempo para brigar com o marido pelo seu ideal, pois a epidemia de cólera logo a alcançou.

As diarréias líquidas e inodoras, junto com os vômitos excessivos trataram de escolher um dia no meio do ano de 1855 para acabar com o maior amor da Bahia. Pai Velho trancou-se no quarto, não compareceu ao enterro. E consultou seus orixás, pediu conforto para ela e, uma semana depois, pôs-se a caminhar pelas estreitas ruas de pedras da cidade da Bahia.

Sentiu um brilho diferente nos olhos ao ver as crianças de barriga estufada e corpo magro correndo pelos becos, enquanto tentavam desviar das enxurradas de excrementos que vinham do alto dos cortiços, ou pulavam dos ratos vindos em alta velocidade, lá do início da rua.

Seus olhos já tinham visto tais cenas, mas jamais haviam fotografado os ratos que passeavam sobre os pés dos carregadores que no pouco tempo de folga sentavam-se na calçada, bem ao lado de alguns corpos de negros esquecidos.

Tanta foto de uma só vez provocou um borrão na cabeça do Pai e, como uma imagem holográfica, desenhou de alguma forma o rosto de Isabelle. E quanto mais Pai Velho caminhava, mais esse rosto se esvanecia, e as imagens da rua ficavam nítidas.

Como um movimento automático, o Pai foi entrando no consultório do Dr. Antonio Cordeiro, um jovem médico que estudava pestes. Numa verborragia contou tudo que sucedera uma semana antes e perguntou, em tom de ameaça, se o médico tinha idéia de quantos talentos, quantos amores, quantos homens bons poderiam morrer por uma irresponsabilidade da elite.

Depois disso, virou as costas e saiu. O jovem médico imediatamente tomou uma providência. Começou a escrever um artigo sobre a cólera-morbo e nele dissertou a respeito do quanto os senhores de escravos eram responsáveis por aqueles males. Estava claro que aquilo era um castigo de Deus contra os maus tratos por eles cometidos.

Enquanto isso, o Pai caminhava rapidamente pelas ruas, sem deixar de fotografar nada através de suas retinas. Depois estudou muito sobre a doença e convocou muitos libertos e trabalhadores livres da região.

Contou-lhes sobre lindas histórias de amor: entre mães e filhos, homens e mulheres, pais e filhos e amigos. Mas todas acabavam por conta da cólera e da sujeira humana. As pessoas ficaram estarrecidas com os fatos e saíram espalhando-os vizinhança afora. Os que tinham escravos passaram a rever o comportamento destes, os que não tinham, reviram seus próprios.

Mas o Pai enlouqueceu. Saiu contando histórias de doenças que já nem faziam mais sentidos. Falava coisas horríveis sobre médicos que cortavam para curar e pílulas milagrosas. Depois morreu e não teve condições de vender escravos. E foi-se com um grito preso na garganta, um grito que virou uma pedra no coração. E, enquanto na pedra da lápide dizia: “Aqui jaz um homem que morreu de doença da alma”, na sua pedra tinha escrito: Isabelle.

Malluco Beleza
Enviado por Malluco Beleza em 11/07/2011
Reeditado em 11/07/2011
Código do texto: T3089272
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