Seu Enrico em: O milagre da melancia.

Seu Enrico em: O milagre da melancia

Ironi Lírio

Introdução

Seu Enrico era um filho de imigrantes italianos que morava com sua mulher, Dona Guilherma e seus dez filhos no interior paulista, lá pras bandas do Rio das Almas. Tinha em uma pequena chácara no centro da cidade.

O pai do Seu Enrico, Seu Francisco Sudário e seu irmão Giuseppe, trabalhavam como tropeiros e viajavam para o sul e sudeste do Brasil levando animais para serem vendidos nas fazendas. Mas, medroso como ele só, Seu Enrico preferiu seguir outros caminhos. Trabalhava como vendedor ambulante.

Não seguia o pai no trabalho de tropeiros porque, muitas vezes, tinham que dormir pelos campos ao relento ou ao redor de uma fogueirinha, abrir picadas nas matas para passar com os animais, enfrentar bichos selvagens e alguns ladrões que pretendiam roubar suas mercadorias.

Sua mulher, Dona Guilherma, cozinhava o dia todo. Fazia biscoitos, bolinho capotado, pamonha, pipoca, chouriço e ainda torrava amendoim.

Seu Enrico encarregava-se das vendas. Todo o dia andava pelas ruas da cidade vendendo biscoitos e, à noite, vendia pamonhas na pracinha.

Seu filho mais velho, Benedetto, vendia amendoim torrado e pipoca na porta do cinema, mas também, vendia bolinhos e chouriço na Pensão da Mafalda que ficava nos arredores mais afastados da cidade.

Na Pensão da Mafalda seu Enrico não entrava. Além de ser um lugar mal freqüentado, ficava no meio do mato e ele poderia ser picado por uma cobra, ou até cair em tentação com as mulheres da casa e depois, sair de lá com alguma doença mortal.

As moradoras da pensão até que o chamavam para fazer uma visitinha, mas ele vivia fugindo das moças. Por isso mandava o moleque.

O vigário da cidade, o padre Salvatore, não gostava nada, nada, das idas do menino àquele lugar, mas fazia vistas grossas porque em todos os domingos, Seu Enrico dava-lhe de presente uma cesta de bolinhos e um rolo de chouriço. Além do mais, as moças da pensão eram as melhores freguesas do seu Enrico. Compravam a rodo.

No Domingo, enquanto os fiéis assistiam à missa, os filhos do Seu Enrico esperavam pelo lado de fora da igreja com as cestas cheias de guloseimas para vender. Uma parte do dinheiro arrecadado com as vendas seria do Seu Enrico, outra parte da paróquia.

Durante uma das missas, o padre Salvatore deu uma espiadela na porta da igreja e, vendo os meninos com as cestas cheias, esfregou as suas mãos umas nas outras:

- Hoje poderá render um bom dinheiro! Suspirou o vigário enquanto pensava nas inúmeras reformas que tinha para fazer em sua igreja.

Depois da missa, quando os meninos trouxeram as cestas vazias, Seu Enrico entregou a oferta ao padre. No mesmo instante, Benedetto aproveitou a ocasião para cutucar o pároco:

- Sabe padre Salvatore, a Dona Mafalda comprou quatro rolos de chouriço e mandou encomendar uma cesta cheia de bolinhos da minha mãe para a festa de hoje à noite. Ela mandou convidar o senhor. Disse que vai começar depois das onze e meia, o Senhor vai?

O padre Salvatore quase teve uma síncope enquanto contava o dinheiro.

Seu Enrico percebendo o mal provocado por seu filho, tratou depressa de tirá-lo de lá cobrindo-o com toda sorte de ameaças possíveis.

Por fim, o menino com medo das cintadas do pai, resolveu dar o assunto por encerrado. Naquele resto de dia, não se aproximou do pai nem para lhe pedir a bênção de boa noite. Seu Enrico só foi encontrá-lo no dia seguinte.

O Milagre

Na mesma cidade em que morava o Seu Enrico, havia também uma família de imigrantes japoneses. Viviam de plantar e vender verduras e algumas frutas.

Toda vez que Seu Enrico queria comer uma fruta, mandava um de seus filhos comprarem na chácara do japonês.

Certo dia, passando por lá, desejou comer uma melancia. Seu Enrico, então, foi até a porteira e chamou pelo amigo. Chamou várias vezes, bateu palmas, subiu na porteira, mas não apareceu ninguém. O japonês não estava. Desanimado foi para a sua casa sem a fruta.

Seu Enrico voltou à chácara do japonês por três dias seguidos, mas não encontrando ninguém, foi para sua casa e chamou o seu filho:

- Benedetto venha cá! Vamos até a casa do japonês que eu quero comprar uma melancia.

Chegando à chácara, Seu Enrico deu instruções ao menino:

- Benedetto, pula a porteira devagarzinho para não acordar o cachorro que está dormindo perto da porta. Depois, vá beirando a cerca sem fazer barulho, até chegar à plantação de melancias.

- O senhor vai roubar uma, pai? Disse admirado o menino.

- Claro que não! Eu não sou ladrão, vou comprar. Pegue este dinheiro e, quando você encontrar uma melancia, amarre-o nos ramos e colha uma bem madura.

- Mas e se chover? Vai molhar todo o dinheiro.

- Se chover e molhar o dinheiro, o japonês irá encontrá-lo do mesmo jeito. Então saberá que eu comprei e não a roubei. Agora anda, vai logo buscar essa melancia!

O menino pulou a porteira e por sorte não foi mordido pelo cachorro.

Juca, o cachorro, estava preso a uma corda que ia da porta da casa até a entrada da chácara. Foi por um triz.

Benedetto embrenhou-se pelo meio dos pés de melancia e depois de algum tempo, voltou com uma fruta bem grande nas mãos.

- Fez o que eu lhe mandei, Benedetto?

- Fiz pai. Amarrei o dinheiro no pé de melancia e peguei uma fruta bem madura.

Seu Enrico sorriu de alegria e foram embora satisfeitos.

Passados alguns dias, quando Seu Enrico saía para vender seus bolinhos, viu um alvoroço na paróquia. O padre Salvatore estava saindo apressado. Nem cumprimentou os fiéis que estavam na porta da igreja.

Curioso com essa atitude, Seu Enrico e algumas pessoas começaram a seguir o padre e chegaram à chácara do japonês.

O padre Salvatore foi entrando na chácara e junto com o japonês dirigiu-se ao pé de melancia.

Enquanto o padre benzia a plantação, o japonês ia contando às pessoas o que havia acontecido:

- Minha filha, estava doente no hospital. A esposa e eu ficamos com ela durante uma semana. Quando o médico deu alta para a menina, me passou uma receita de remédios para comprar. Mas como não havia vendido nada naqueles dias, não tinha o dinheiro. Desconsolado, comecei a andar pelo terreiro pensando no que fazer, quando de repente, vi uma nota amarrada no pé de melancia. Era exatamente a quantia que eu precisava para comprar o remédio. Foi um milagre!

- Um milagre! Um milagre! Começaram a gritar as pessoas que ouviram.

Seu Enrico, atordoado, tentava chamar a atenção do padre Salvatore, mas ele não lhe dava ouvidos.

Benzia a plantação, a horta, as ferramentas, a casa, o quintal, tudo.

Quando conseguiu, com muito custo, afastar o padre da multidão que se formava na chácara do japonês, Seu Enrico lhe falou baixinho:

- Padre Salvatore, pare de benzer esta chácara; não teve milagre nenhum!

- Como não teve; que estória é essa, meu filho; não ouviu o japonês contar para todo mundo? Isso é um pecado grave. Cuidado com o castigo!

- Não foi milagre nenhum padre! Eu comprei uma melancia.

Espantado com a declaração do Seu Enrico, o padre Salvatore aproximou-se do amigo e discretamente lhe perguntou:

- Como comprou; quem vendeu para você se aqui não tinha ninguém?

- Ninguém vendeu padre, mas eu comprei mesmo assim!

Ainda tentando convencer o pároco, que não parava de andar pelo terreiro da chácara, Seu Enrico continuou a explicar:

- Eu vim comprar a melancia durante três dias e não encontrei o japonês. O Senhor não ouviu o homem dizer que estava no hospital? Eu queria a melancia, mas não iria roubar, não é? Então falei para o meu filho Benedetto amarrar o dinheiro no pé de fruta e nós colhemos uma. Foi esse o milagre, padre!

O padre Salvatore, mais atordoado que o Seu Enrico parou de andar, olhou para aquela multidão que se formava na chácara e, falou baixinho:

- Seu Enrico, olha a multidão que está aqui. Como é que eu vou falar para esta gente tão devota que não houve nenhum milagre? Presta a atenção: você fica quieto e não conta nada para ninguém. Eu te proíbo de contar! Se não fizer bem para essa gente, mal não irá fazer. De qualquer maneira você e seu filho fizeram um milagre para este homem que não tinha o dinheiro para comprar o remédio da filha. Além do mais, eu já gastei toda a minha Água Benta para abençoar esta chácara.

Seu Enrico ainda tentou se explicar:

- Mas padre Salvatore!

- Não diga mais nada, Seu Enrico! Eu te proíbo de dizer uma só palavra e, se alguém souber te excomungo da igreja! Por causa deste milagre, o japonês vai arrumar o telhado da paróquia que tem goteiras por todos os lados.

Quando Seu Enrico se preparava para ir embora, foi chamado de volta.

- Onde pensa que vai? Ainda não acabou. O senhor e seu filho farão penitência durante uma semana por conta de não terem me contado sobre a compra dessa fruta. Se eu soubesse antes, não teria vindo aqui fazer papel de bobo. O senhor é culpado!

- Eu, padre?

- Sim Senhor, você mesmo. Sete Padres Nosso, sete Aves Maria por uma semana e sete bolinhos capotado na minha paróquia por sete dias para o café da manhã e o lanche da tarde também. Quentinhos! E tem mais uma coisa:

- Diga ao Benedetto que ele nunca me viu na Pensão da Mafalda, ouviu bem?

- Claro, padre Salvatore, pode deixar que eu darei o recado.

Diante daquela sentença, Seu Enrico voltou calado para a sua casa e, durante muitos anos, ficou ouvindo as pessoas contarem o milagre que presenciaram na chácara do japonês. Ainda hoje, esta história é contada nas redondezas da cidade e nas rodas de fogueira. O que nunca se ouviu, foi alguém dizer os nomes dos santos que fizeram o milagre acontecer.

Apenas três pessoas na cidade sabiam quem foram os milagreiros da melancia: o padre Salvatore e os próprios Santos que pela primeira vez na história do céu, receberam penitência como castigo pelo milagre que fizeram. Santo Benedetto e Santo Enrico.

Mas como nenhum segredo fica escondido por muito tempo, agora você também sabe, porque sou eu quem lhe conta este causo.

Fim.

Ironi Lirio
Enviado por Ironi Lirio em 13/07/2011
Código do texto: T3093750
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