A caneca

Ainda hoje tem gente que caminha pelos sertões do Brasil. É gente humilde que não tem dinheiro pra pegar condução. Mas tem também fugitivo da justiça, gente de maus bofes, com variados crimes nas costas, escapando de polícia. E ainda tem gente que anda errando pelos caminhos do mundo, sem parada e sem rumo.

Sigismundo Só é homem de idade muito incerta e esperto no caminhar pelas brenhas dos matos. É um matuto peregrino, sem qualquer certidão de nascimento, um desses que anda a esmo pelas veredas dos matos, das caatingas, das estradas desertas...

Diz-que, caminhando horas e horas debaixo do sol e sem jeito de encontrar água pra beber, estava desesperando e entregando a alma pra Deus.

Uma tonteira ia e vinha, a ponto de jogá-lo já no chão duro. Mesmo com alguma farofa no embornal, pra matar a fome, o problema era água. Farinha não desce sem água. Era da água que precisava para continuar a ver a luz do dia.

Já quase sem forças, avistou um ranchinho distante e uns dois cabritinhos berrando perto da cerca. Pensou um pensamento um tiquinho alegre: tô salvo!

Foi chegando, só com força de arrastar os pés no chão, e logo apareceu um molequinho magricela de barriga grande e lisa.

Era difícil ver claramente a cara do menino, suja que estava de barro na testa e no queixo. O ranho do nariz, limpo com as costas da mão, tinha deixado um risco na pele da cara que ficou parecido com rastro de lagartixa.

Sigismundo Só disse, com o resto da voz que tinha, sentando rápido num toco:

--- Menino, tem alma boa nesta casa pra me socorrer com um pôco d’água?

Sigismundo firmou mais os olhos no garoto. Percebeu que a tonteira foi passando um pouco. Aí, reparou na ferida enorme que o moleque tinha nos dois cantos da boca.

--- Manhê! Manhê! Tem um homi aqui pidino água! – E saiu correndo para dentro do rancho, já trombando com mais três, quase do seu tamanho, que saíram de trás da casa.

Uma mulher apareceu na porta. Passava as mãos pelos cabelos desgrenhados, tentando tirá-los de cima dos olhos.

--- Licença, senhora! Careço de um gole d’água. A senhora me arranja, pelo amor dos seus filhinhos?!

Como a luz do Sol atrapallhasse, a mulher colocou a mão em forma de concha sobre os olhos para ver melhor Sigismundo, ainda um pouco desconfiada, que, nestes sertões, os bandidos são conhecidos por fazerem das suas.

--- Água, aqui, é pôca, homi de Deus... e caneca só tem uma em casa! Mas, senta aí que vô vê o que... – E já virou as costas, sumindo no escuro do ranchinho.

Sigismundo tirou o chapéu e o descansou sobre o joelho. Deu um suspiro de alívio e passou um lenço no pescoço.

Já ia fazer um gracejo com as crianças, quando a mulher veio de dentro da casa. Os meninos estavam todos enfileirados, encostados na parede de barro duro, observando o desconhecido e cochichando entre eles.

Sigismundo Só se levantou. Aí, ele pôde reparar bem na boca da mulher: ela também tinha feridas horríveis nos cantos da boca toda sem dentes.

E foi então que ele teve uma lembrança e um arrepio ao mesmo tempo: a mulher disse que só tinha uma caneca pra beber a água.

Sigismundo abaixou a cabeça e segurou a caneca.

Quando ia levá-la até a boca, reparou que ela não tinha um pequeno pedaço na borda. Pensou imediatamente: bebo no quebrado!

Bebeu a água toda de uma só vez, satisfeito de sua esperteza.

Devolveu a caneca à mulher, que esboçou um sorriso babento e meio caído para um lado da cara.

Baixinho, misturando timidez e vergonha, a senhora gracejou:

--- O homi tem a mêma mania qu’eu tenho! Bebe no taio da caneca...

Sigismundo teve ânsia, mas já tinha matado a sede. Sentou-se de novo no toco e sorriu, agora bem sem graça.