O Caso do Jogo de Xadrez e do Teatro

I

O xadrez é um jogo de tabuleiro comumentemente praticado por dois ou mais competidores. Possui determinadas características de arte e ciência que excluem quase que definitivamente o elemento sorte. O objetivo do jogo é dar o mate ou xeque-mate no adversário e tomar-lhe a peça mais valiosa e importante, o “rei”.

Já o teatro é uma arte na qual uma ou mais pessoas representam personagens reais ou imaginários. Elas interpretam acontecimentos e histórias diante do público presente no local da encenação. O espetáculo tem como um dos seus principais objetivos apresentar situações fantasiosas ou reais e despertar sentimentos e as mais variadas reações nos espectadores.

II

Cientes destas informações, recordo-me de um juiz que dizia que as audiências muitas vezes lhe lembravam tanto uma partida de xadrez quanto a encenação de uma peça de teatro.

Em relação ao xadrez ele comentava que quando uma das partes movimenta ou deixa de movimentar determinada peça do jogo, isso faz com que a parte oponente proceda igualmente a algum tipo de movimento ou ação. Por exemplo: se numa audiência um empregado traz uma testemunha para provar determinada questão por ele levantada, deve a empresa trazer igualmente uma ou mais testemunhas para tentar reverter a situação e provar o contrário.

Quanto à peça teatral, o juiz afirmava que não raro as audiências se assemelhavam à representação de atores vista nos palcos de quaisquer teatros pelo mundo afora. Tínhamos ali – segundo me dizia aquele juiz – a seguinte situação: uma série de atores que buscavam representar convincentemente determinadas ações com o objetivo de despertar no público (que no presente caso se via representado exatamente pelo juiz e a parte opositora) certas emoções e conclusões a respeito de determinado assunto ou problema.

Dito isso, dirijamo-nos “teatralmente” ao nosso caso.

III

(As cortinas se abrem. Inicialmente o ambiente se encontra às escuras. Lentamente, porém, luzes começam a iluminar todos os cantos e recantos daquele cenário jurídico. É então que o juiz declara aberta a audiência e os demais atores e atrizes presentes dão início à encenação, cada qual buscando representar da melhor forma possível o seu papel na história. Vê-se no centro da arena uma mesa comprida e algumas cadeiras aonde se acham assentados o empregado, o empregador e seus respectivos advogados. Mais ao fundo busca o juiz se ajeitar em uma cadeira almofadada)

A testemunha do reclamante acabara de ser contraditada pelo advogado da parte contrária sob a alegação de ser amiga do empregado. Como se sabe, a impugnação (constestação) da oitiva de uma testemunha pode se dar pelos motivos de amizade íntima, inimizade capital para com alguma das partes, parentesco ou interesse pessoal na ação, conforme consta do parágrafo terceiro do artigo 405 do Código de Processo Civil. E o momento processual para que a contradita seja requerida é logo após a qualificação da testemunha e antes da prestação do compromisso de só dizer a verdade.

Caso o juiz acate a contradita, dispensará a oitiva da testemunha. No entanto - e caso queira ou entenda existir alguma necessidade para a sua audição - poderá ouvi-la sem lhe tomar o compromisso de dizer a verdade, mas como se um simples informante fosse.

Nesse ponto da nossa história o juiz já começara a elaborar um pequeno interrogatório para confirmar ou não a realidade da alegada amizade da testemunha com a testemunha:

- O senhor acaso é amigo do reclamante?

- Não, não sou e nem nunca fui.

- Tem ou teve algum tipo de convivência com ele? Freqüenta-lhe a casa? Costumam sair juntos ou se encontrar para qualquer finalidade?

- Certamente que não, senhor juiz.

- O senhor tem qualquer tipo de inimizade por alguma das pessoas presentes nessa sala?

- De forma alguma...

- E tem interesses pessoais nessa ação, nesse processo? O resultado desses autos lhe interessaria particularmente de alguma forma?

O juiz permanece observando a testemunha por algum tempo.

- Não, não tenho interesse algum.

Antes de prosseguir com o depoimento, volta-se o juiz uma última vez para a testemunha e lhe questiona se teria algo a acrescentar em relação ao que já houvera dito:

- Não, retruca a testemunha.

Em seguida permanece ansiosa e agitada em sua cadeira. Daí a pouco, porém - antes da continuação do interrogatório - ergue um dedo tímido e solicita a palavra ao juiz.

- O senhor deseja acrescentar mais alguma coisa, torna a perguntar o meritíssimo.

- Ora, doutor, na verdade eu tenho algumas coisas a acrescentar sim. Eu não deveria e nem poderia nesse momento permanecer calado diante da injustiça que vem sendo cometida com o reclamante. Mas acontece que o sujeito é muito meu amigo e eu não poderia deixar de esclarecer algumas coisas. Em primeiro lugar, devo informar a vossa senhoria que o meu compadre é excelente pessoa, muito inteligente e capaz e que sempre trabalhou com toda a honestidade e satisfação para o reclamado. Ele não merecia que o seu patrão lhe tratasse dessa maneira. É por isso que eu estou aqui hoje: para defendê-lo como puder...

Assim que a testemunha se calou, o juiz tomou a palavra e se dirigiu ao datilógrafo de audiências:

- Contradita acatada sob o fundamento de amizade íntima. Entretanto, tendo em vista algumas questões específicas levantadas anteriormente pelo douto procurador do reclamante, o juízo ouvirá a testemunha como simples informante...

(Nesse momento o advogado do reclamante lançou um olhar desolado para a testemunha que trouxera e abanou significativamente a cabeça de um lado para o outro. Ouviu-se na sala aplausos e assovios. As cortinas imediatamente voltaram a se cerrar e as luzes se apagaram lentamente, umas após as outras e até que todo o cenário ficou às escuras. À exceção do juiz, todos os demais atores se levantaram de seus lugares e se retiraram da sala. Em seguida a lâmpadas tornaram gradualmente a iluminar o ambiente e os espectadores puderam apreciar a entrada de novos atores e personagens que buscaram ocupar os mesmos postos e lugares anteriormente ocupados pelos que haviam acabado de sair. Dentro em pouco se iniciaria outra encenação e uma nova audiência começaria...)