Ite missa est...

Primeiro de outubro de um ano não lembrando.

Início e avanço de inverno. Madrugada Noite de cruviana e madrugada. Cinco horas da manhã. Os sinos, um grande e um menor, começam badalação. Intercalação de sonos. Badaladas roucas, graves, baixas, fracas, acompanhadas de tinir agudo. Uma dúzia ou pouco mais de foguetes de três tiros, espocam. Três tiros de foguete-canhão, de tiro só, encerram a alvorada. É a acanhada alvorada da festa, do festejo propriamente dito, de Nossa Senhora do Rosário. Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, como denominada e conhecida pelos escravos que construíram a igreja.

O toque da alvorada é seguido pela primeira chamada da missa.

Dona Adelaide desce os dois pequenos lances da escada. Puxa a pesada porta do campanário. Atravessa o pequeno pátio e entra pela porta de uma das sacristias. Fungando, por doença ou sestro, vai arrumando os paramentos do padre, para a primeira missa de uma série de trinta ou trinta e uma, contando com dia da coroação da Virgem do Rosário.

Vai, de um lado para outro, segurando castiçal com uma vela acesa para guiar caminho.

Seu Raimundo, o Raimundo Beru, – como era conhecido o filho de criação de dona Silvandira Guimarães, a dona Silva – eterno aprendiz de sacristão –, que tocara os foguetes, sai, com lentidão, da frente da igreja. Beirando parede, tateando escuro, vai, também pelo lado esquerdo, esgueirando-se sob o beiral, para o interior do templo, pelo anexo onde são guardadas as peças ornamentais.

Encontra dona Adelaide em arrumação do altar-mor. Acompanha todos os movimentos da velha, em aprendizado de ver e escutar. Entra aqui, entra atrás. Entra acolá, como se fosse sombra. Segue calado, quase pisando calcanhar.

OoO

Acorda sonolento. Ouvira, entre sono e cochilo, a alvorada. Assim como a primeira e a segunda chamadas da missa, seguidas de fraco espocare de foguete solitário. Era como se estivesse sonhando. Pensou em morgar mais um pouco. Virou-se e virou-se. Foi de punho a punho da rede, em ajeito de posição. Cobriu-se com a varanda de ralo entrelace. Ficou atravessado, procurando repousar cabeça no lençol embolado, para não maltratar pescoço. Não conseguiu.

Levantou-se. Olhos pesados, sonolentos pelo abrupto acordar com o barulho da alvorada, seguiu para a janela para olhar tempo, o romper d’alva, pelas frestas. Tudo escuro com começo de claridade vencendo nevoeiro de tempo nublado, invernoso.

“É... inda tem muito tempo...” – pensou, enquanto escondia rosto evitando frieza e constipação.

Ouviu o primeiro pisar de gente descendo para o Mercado Central. Sentiu cheiro de café. O pai já estava de volta da primeira caminhada, primeiro bordo, como dizia. A mãe arrastava chinelo de um lado para o outro, na cozinha, em começo dos quefazeres que não tinham fim.

Lembrou-se que não tinha aprendido, totalmente, as frases, em latim do livreto, espécie de catecismo, manual ou Adoremus, emprestado por dona Adelaide Meneses, uma das Meneizinhas que cuidavam da igreja, para que decorasse tudo e ajudasse, como coroinha, a celebração da missa.

“Estou pebado!” – apavorou-se. Só sabia o primeiro período, primeira frase de resposta. Responderia, “Ad Deum qui laetificat juventutem meam” quando o celebrante dissesse “Intróito ad altere Dei”, primeira evocação. E só.

Lembrou-se do acordo feito com dona Adelaide. Cinco cruzeiros por cada missa. Era como se tivesse sido ontem. Só que não foi.

OoO

Começo de setembro. Manhã quente, depois de madrugada fria relembrando agosto. Pouco mais das nove horas. Batimento de palmas na porta da frente. Palmas fracas, de pouca ressonância, como se de criança. Sai correndo do quintal, atravessando sala de jantar para o corredor. Para. Esforça vista. Destaca vulto miúdo na soleira da porta. Não dá para ver direito quem é por causa da contraluz. Reforça mais e mais a visão, com franzir da testa e semicerrar de olhos. Não vê como deveria ver. Só ouve voz de chamamento, entremeada por fungação, favorecendo reconhecimento.

“Dona ‘Delaide? É a senhora?” – exclamou, indagando. “Vou chamar a mamãe!” – completou sem início ou aumento de conversa, enquanto girava no calcanhar direito procurando caminho de retorno, com ensaio de carreira.

“Espera aí! Eu quero falar é contigo mesmo!...”.

Olhou, dos pés à cabeça para a miniatura de mulher que se postava à sua frente, pouco antes da entrada. Avançou dois ou três passos... Estancou.

“Comigo?” – perguntou aflito, enquanto vasculhava pensamento procurando o que tinha feito de errado. Não lhe veio à memória nenhuma malinação, arteirice. “O quê será que ela quer?”. Ficou esperando resposta de si para si, enquanto olhava, mais e mais, em desconfio, para a velhinha.

Analisou, mais uma vez, dos pés à cabeça. Mais pés e mãos. Os dedos das mãos da quase octogenária não paravam de mexer, em contrações involuntárias como se quisessem agarrar, segurar o ar. Os dedos dos pés, sincronizados, se contraíam pressionando as palmilhas das alpercatas, como se em tentamento de equilíbrio do corpo franzino, quase de criança de pouco mais de dez anos.

“Quero te propor um negócio!” – respondeu com riso afirmativo, quase em disfarce, enquanto fungava.

“Negócio? Comigo?” – redarguiu, sem entender, mais curioso que antes.

“É!... Estás vendo este livrinho? É um livro de orações. Tem uma parte que ensina a ajudar a missa. É em latim, mas é fácil de decorar!” – explicou, mansamente, entre uma e outra fungada, enquanto tirava de um dos bolsos do vestido, um pequeno livro de capa preta e letras douradas.

“Te pago cinco cruzeiros por cada missa. O mesmo preço de sinal de defunto. E aí?” – arrematou, tentando convencimento.

Fez cálculos e mais contas na mente, por ser bom de cálculos de cabeça, apesar de ser ruim em matemática. Pelo menos multiplicação de poucos números sabia, embora estivesse na primeira série do ginásio. Se em três dias ganharia quinze cruzeiros, em trinta dias ganharia cento e cinquenta. Sorriu e não discutiu, aquiescendo com gesto de cabeça e frase imediata.

“Tudo bem! Tá bem! Dê cá o livro!” – disse, estendendo a mão.

Abriu o livro no lugar marcado com uma tira de papel. Leu ou tentou ler o escrito em latim, em negrito. Leu e não entendeu. Achou fácil, mesmo sem entender. O pensamento estava só no dinheiro que ia ganhar.

Levantou a vista e viu a velha que saía fungando, sem cumprimento de despedida. Só resmungos ininteligíveis.

Paginou e olhou, mais uma vez, o livro. Agora nas páginas seguintes. Depois as primeiras folhas. “É um livro de orações, de rezas...” – manifestava pensamento enquanto os olhos corriam pelas linhas, traduzindo letras e palavras. As páginas eram divididas em duas colunas. Uma em português; outra em latim. Afeiçoou leitura. Leu todos os dias. Só as orações. A parte da missa, em latim, deixava para depois. Deixava e foi deixando e deixando mais.

OoO

“Tô é lascado!” – retornou da divagação. “O que não tem remédio, remediado está! Vou ajudar a missa de modo que ninguém note que não sei de cor.” – invocou provérbio aprendido em escuta de conversa dos mais velhos, resolvendo ou esquecendo problema.

Mais que depressa, pondo em prática a decisão, correu para o quarto. Vestiu a calça comprida, de brim cor de cáqui, com finas tiras de debrum azul-marinho que desciam lado e lado, do cós à bainha. A camisa da mesma cor, mangas compridas abotoadas no punho, com espécie de dragonas com tiras azuis, uma em cada, indicando a série ginasial.

Enquanto misturava pensamento com realidade, procurava dar o nó na gravata preta, de modo que a ponta mais grossa não ficasse abaixo da linha do umbigo, quase que de modo milimétrico. O nó, dado com pressa, não seria “xoxotinha”, mais difícil de dar. Seria corrediço, em forma de losango posto em diagonal, nó sobre nó. Depois ajeitaria com mais calma.

Café tomado com afobação sai porta afora. Vence, com passos largos, os poucos metros entre casa e a porta da sacristia da igreja. Entra. Padre Gilberto já estava vestindo os paramentos, com ajuda do aprendiz de sacristão. Apalpa o bolso para confirmação de que não tinha esquecido o pequeno livro. Sentiu o livro e sentiu alívio.

Diante do altar-mor, o padre curva o joelho, em genuflexão, benzendo-se, pronuncia a frase iniciante da celebração: “In nomine Patris et Filii et Spirius Sancti. Amem. Faz pausa de respiro e continua: “Introito ad altere Dei”. Respondeu com voz forte, impostada, tentando esconder mal-estar de calafrio na espinha: “Ad Deum qui laetificat juventutem meam”. Sorriu intimamente. Até ali, tudo bem – pensou, em regozijo.

A alegria durou pouco. Seguidamente, o padre desfiou frases em latim. No começo tentou acompanhar até a última palavra do texto, tropeçando nas pronúncias, já que a língua morta não tem acento. Onde não sabia enrolava a língua. E assim foi. Não por muito tempo. Ouviu o arrastar das sandálias de dona Adelaide. Sentiu a presença da velha ao seu lado, ajoelhando-se e tomando o livro das suas mãos. Levantou-se e saiu pela pequena porta do lado direito, rumando para a segunda sacristia. Sem nada dizer e sem olhar para trás.

Procurou refazer-se do susto e da decepção. Arriscou olhar para o corpo da igreja. Quase ninguém nos bancos da frente. Espichou pescoço e olhou para a nave. Não havia quase ninguém. Uns três ou quatro gatos-pingados. Na parte da frente só algumas carolas rezando de cabeça baixa.

“Ninguém viu nada!” – alegrou-se. Saiu de cabeça erguida e pisar firme, pelo corredor central do templo. Foi, a passos largos, buscar os livros e cadernos em casa.

No caminho para o Ginásio Diocesano, conversando com um e com outro, já não se lembrava da missa e do livro de orações.

(do livro LARGO DO ROSÁRIO)

Firmino Freitas
Enviado por Firmino Freitas em 11/08/2011
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