Deus visita o sertão 2

(Conto vencedor do concurso de contos da cidade de Niterói)

Deus visita o sertão 2

Terra seca, castigada.

Parecia que naquelas bandas de Jaguariúna do Salto, Deus tinha enviado toda a seca do mundo de uma só vez! Tempo quente, de azedar o leite até dentro das tetas das vacas, que desidratadas acabavam por padecer.

Viriato morava ali, as roupas no final do dia chegavam a ficar de pé, de tanta poeira misturada com o suor, andava todo dia cerca de 6 quilômetros para buscar dois baldes de água para mãe e os irmãos que moravam juntos na mesma casa.

Uma escadinha de crianças, normal no Piauí, onde ainda é comum o descontrole da natalidade. Na casa de Viriato, a coisa ainda se estreitava mais, pois além de tudo, filhos vinham em dupla, o único que nasceu sozinho foi Viriato, e parece que por isso tinha que trabalhar dobrado. Era o mais velho e por isso, o mais cobrado.

Aos 14 anos de idade, Viriato, nome como o do pai, levava uma vida que nenhum adolescente queria, não aprendeu a ler, não tinha namorada, não tinha dinheiro e mesmo que tivesse ,não tinha onde gastar. Na venda de seu Raimundo ele não pisava, por ordem da mãe, que morria de desgosto por ver seu marido se acabando em “Pinga” naquele balcão, e assim Viriato vivia o seu dia-a-dia, esperando o dia em que sua sorte mudaria.

O dia mais alegre do mês era o dia em que recebia visita do assistente social que trazia a cesta básica que ajudava a família a vencer a fome, e assim se seguia a vários há vários anos.

Viriato mantinha a mãe e os mais novos com a venda de sucata, que pedia de casa em casa e aos domingos com a carroça cheia puxada por cereja, a mula que herdara do avô, conseguia ganhar dinheiro para complementar a renda e diminuir o sofrimento em sua casa.

O maior orgulho de Viriato era levar os pequenos para a escola, mesmo saindo de casa bem cedinho, Viriato tirava a carga de cereja e enchia a carroça com as crianças e assim o dia de Viriato se iluminava. As crianças cantavam atrás da carroça do inicio ao fim da viagem, os mais novos com 3 anos e os mais velhos com 12 anos, todos sem a certeza de dias melhores, mas com a felicidade infantil que levava alegria por onde passava.

A coisa mais linda, para Viriato era quando os mais velhos pegavam o caderno da escola , doados pelo governo, e cantavam o Hino Nacional do verso, acompanhados pelos pequenos que só sabiam o final das palavras,e até Viriato já sabia o hino.

Eis que um dia, ao passar pela estrada com cereja carregada de sucata, vê no fundo dos olhos em meio a poeira, um senhor caído, parecendo um defunto na estrada. Viriato brecou cereja e correu para ver se o homem estava vivo ou morto e viu que estava respirando. Viriato nunca havia visto o homem antes.

- Moço, o senhor mora aonde? – Perguntou Viriato

O velho respondeu:

- Moro longe, mas estou em toda parte.

- Consegue andar?- Perguntou Viriato

- Nem um cadiquinho.- Respondeu o velho

Os ossos do velho pareciam querer rasgar-lhe a pele de tão aparentes que estavam. Viriato não sabia o que fazer. Poderia levar horas até passar outro transporte para socorrer o velho, a carroça estava cheia de garrafas que valeriam a sustentação da família por uns 15 dias.

Viriato olhou para a carroça carregada, olhou para a estrada, olhou para o céu, olhou para o velho caído e não achava uma solução. De repente no céu, viu meia dúzia de abutres aguardando a decisão de Viriato, ansiosos pelo abandono e para darem início ao banquete.

Foi quando Viriato tomou a decisão sem pensar mais, em 5 minutos tirou tudo da carroça e deixou o velho na madeira. Viriato começou a andar pela estrada com cereja o mais rápido possível, o hospital mais próximo ficava a 16 kms de onde estavam. Eis que de repente, a carroça bate em uma pedra e quebra a roda.

Viriato coça a cabeça, não sabe o que fazer, abandonar a carroça ali é pedir pra ser roubado, mas não tinha jeito. Tirou o arreio que atrelava a carroça em cereja, deitou o velho no lombo do animal e seguiu em frente. Aquele não era um bom dia para Viriato.

Andou mais dois quilômetros e eis que surge na estrada um carrão que buzina para Viriato e pára logo em frente. Viriato estranhou, ali não era de se passar automóveis sem ser do governo, mas foi até lá e explicou a história ao homem bem vestido que estava no carro.

O homem desceu impecável e foi ver o velho no lombo do animal.

Falou para Viriato:

- Larga esse velho na estrada, esse ai tá mais morto que vivo.

Viriato olhou o velho, mas não teve coragem de abandoná-lo, pediu licença ao sujeito e seguiu em frente.

Andando mais 2 kms, Cereja tem um mau súbito e morre no meio do caminho, realmente, aquele não era o dia de sorte de Viriato e pelo visto, também não era do velho.Viriato pega o velho, ajeita em seus ombros magros e segue a estrada, faltava pouco para chegar.

Viriato já estava trocando as pernas de tão cansado, com os olhos sem abrirem de tanta poeira, quando escuta uma buzina familiar.

Eis que vem o homem novamente perturbar o caminho já tão conturbado de Viriato.

- Ei rapaz, entre aqui, o ar está geladinho aqui dentro e tenho água fresca.

Viriato parou, olhou para o homem bem vestido e pediu:

- Moço, por favor, me ajude, em um minuto você deixa este homem no hospital.

O homem respondeu:

- Já faz tempo que quero o fim deste cabra, mas sempre apareceu um troucha para ajudá-lo, vamos lá rapaz, deixe esse homem aí onde está, já está quase morto mesmo.

Viriato olhou para o velho, olhou para o homem, olhou para a estrada e os metros que ainda teria que andar e não pensou duas vezes, colocou o velho nas costas que parecia pesar ainda mais, parado olhou para o homem e disse:

- Nunca te vi nessas bandas, nunca vi seu automóvel ou sua fuça, não aprendi a ler, mas burro sei que não sou, não me parece gente do bem ao contrário deste senhor e mesmo que chegue morto no hospital, com a ajuda de Deus, de meu padrinho Padre Cícero e da Virgem Maria, deixo esse homem no hospital e peço ao senhor, que já que não vai me ajudar, pela fé que tenho no Espírito Santo, saia de minha frente e vá assombrar em outro lugar.

Dito isso, como um carcará que some no horizonte . O carro do homem sumiu, deixou só poeira para trás.

Viriato andou seu percurso e deixou o velho no hospital, quando sentou para descansar e beber um copo de água, acabou adormecendo e acordou assustado com as sirenes do bombeiro e das ambulâncias, a cidade em histeria, médicos correndo de um lado para o outro, Viriato correu para a enfermaria para ver como estaria o velho e descobriu que ele não estava mais lá, ninguém viu sequer Viriato entrar com o velho.

Viriato atordoado foi até o lado de fora do hospital e viu o pânico instalado. A escola pegara fogo e todos se preparam para o pior. A única escola da região, com quase 200 alunos, e nenhuma havia saído do lugar, nem viva, nem morta.

Viriato entrou em pânico ao lembrar que os irmãos estariam lá, e já pensava na tragédia,e em como reagiria sua mãe, que só tinha aquelas crianças para lhe dar alegria, entrou em uma das ambulâncias e foi até o local do sinistro.

Uma testemunha, contou que viu um homem bem vestido parar um carrão em frente a escola e retirar da mala um galão, mas nunca imaginariam que alguém fosse atear fogo na escola com as crianças dentro.

Todos corriam para ajudar, mas com a seca não havia o que fazer, as famílias em volta da enorme fogueira só podiam chorar e esperar o trabalho dos bombeiros para tentarem reconhecer seus filhos em meio as cinzas e destruição.

Viriato deitou-se no chão desolado e tentava entender aquele dia na sua vida. Ali, com os ouvidos no chão, ouviu gritos que vinham do subsolo. A principio achou que que estava enlouquecendo, mas ouvia claramente pedidos de socorro, foi seguindo seu coração em direção aos gritos e se afastando da multidão, entrou pelo mato e colocara a cabeça no chão, como fazem os cães e aproximava-se cada vez mais dos gritos.

‘ Seu coração mostrava que estava certo, ajoelhou e pediu a Deus para que o orientasse por onde andar e que aqueles gritos fossem transformados em gritos de felicidade.Foi quando Viriato ouviu um som familiar, era o Hino nacional e podia conhecer aquele som até embaixo da água que dirá em baixo da terra.

Correu de volta onde estava a multidão arrasada pela tristeza e contou o que ouviu, movidos pela fé e pela esperança de encontrar alguém com vida, foram até o local que Viriato indicou e confirmaram o que antes parecia só imaginação.

Começaram a cavar,no desespero de um final melhor que o esperado, usavam até as mãos, quem não tinha pá, e o inesperado acontecia,encontraram um velho túnel que pertencia a uma velha mina e lá, para surpresa de todos, encontraram além das crianças e funcionários, uma grande nascente de água limpa que poderia abastecer toda cidade. As crianças contavam agitadas como um velho magro mostrou a todos o caminho para o túnel, salvando suas vidas e dizendo que a mina pertencia a um rapaz chamado Viriato, que sem saber de quem se tratava e sem nada receber ajudou a Deus, o todo poderoso em carne e osso, em uma de suas visitas ao sertão.

As autoridades não entenderam como no cartório da cidade havia uma escritura em nome do avô de Viriato em uma terra antes desenganada.

Viriato além de construir um açude, acabou mudando o nome da cidade para Boqueirão e até hoje na cidade contam a lenda de um dia em que Deus veio pessoalmente a terra seca, inundar de alegria e esperança, uma multidão, e provar que quem faz o bem, um dia o recebe de volta.

Izabelle Valladares Mattos
Enviado por Izabelle Valladares Mattos em 13/02/2012
Código do texto: T3496513
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