A Bota Gaúcha

          Ô semaninha fraca, sô. Hoje então, nem se fala! Não vai dar pra levar nem vinte cruzeiros de carne moída pra mãe fazer a janta. Ainda bem que amanhã é sábado – assim pensava Pelotinha, enquanto engraxava seu terceiro minguado par de sapatos do dia já terminando. Aos sábados acorriam à cidade uma leva imensa de gente dos sítios e fazendas das redondezas. Vinham reabastecer-se de mantimentos e querozene, comprar panos de algodão e flanela nas grandes lojas de tecidos da rua principal, soldar suas enxadas e rodos nas oficinas mecânicas, negociar vacas de leite e gado de corte, esses, em acolorados escambos em torno de cálculos rabiscados no chão de terra junto ao pau de amarrar os cavalos – posto que era comum virem à cidade montados, altaneiros, em seus baios, alazões e pedrezes. Às vezes sentavam-se nos bancos da rodoviária onde Pelotinha conquistara um deles como seu ponto de engraxate. Punham suas melhores roupas e aproveitavam para polir suas botas e sapatos, pois sempre haveria de haver um rasta-pé qualquer num dos terreirões de café do município ou um leilão na quermesse da igreja matriz. Pelotinha, entretanto, tinha pouca graxa e pouca tinta. Graxa poderia comprar durante o correr do dia, mas não podia começá-lo sem a tinta. Da preta ainda tinha um tantinho, mas da marrom estava a zero. E a maioria das botas era dessa cor. Tinha que dar um jeito. Assim, colocou três colheres de vermelhão na latinha vazia, encheu-a de água e misturou bem. Ficou uma tinta vermelha e bonita de se ver. No sábado, bem antes da chegada da jardineira, já estava a postos e já havia engraxado quatro pares de sapatos de gente da cidade. O dia prometia ser bom. Dia ensolarado e quente; a cidade, um burburinho desde cedo. Lá pelas onze, procurou pelos seus serviços um dos corretores de gado. Vestia calças brancas de linho, camisa xadrez azul e calçava botas gaúchas pra lá de esfoladas. Era tinta e graxa e muito trabalho de escova e pano. Enfiou uma proteção de papelão entre o cano da bota e a perna da calça e pôs mãos à obra. Escovou o primeiro pé pra tirar a poeira e pintou com a tinta vermelha. Logo percebeu que não podia esperar que a tinta secasse de tudo antes de escovar pois a cada golpe de escova uma nuvem de pó de vermelhão pairava no ar, embaraçosa e difícil de explicar. Duas demãos de graxa bem espalhada sobre o couro enrugado da bota gaúcha, depois escovação vigorosa e, por fim, um samba batido com o pano de veludo deixou o homem contente ao ponto de ser generoso com a gorjeta. Por indicação dele, ainda pegou mais três pares de cano mole e um sanfonado antes de correr para o almoço.

          Quando pôs a cara novamente na rodoviária, pronto para faturar horrores naquele dia maravilhoso, seu amigo Azeitona barrou-o antes de assentar a caixa de engraxate, dizendo que tinha uns homens bem zangados, querendo saber por onde andava aquele gordinho filho-da-puta e que iam capá-lo. Depois que o amigo explicou o motivo de tanta zanga, Pelotinha não teve outro jeito a não ser voltar para casa, guardar a caixa e lamentar a perda de faturamento daquele resto de sábado. Mais tarde, vestido com roupas limpas, bem calçado e de boné na cabeça, saiu para a rodoviária para, sorrateiramente, apreciar o movimento. Junto à trave de amarrar as montarias estavam acocorados dois dos homens cujas botas haviam sido engraxadas por ele. O de calça de linho branco se levantou e Pelotinha viu com horror profissional, o estrago que havia feito na calça do freguês. Na bunda do homem, duas manchonas redondas e rubras enfeitavam suas nádegas e em cada uma das coxas, por trás e acima dos canos da bota, faixas com nuances de vermelho faziam do valente negociante de gado uma triste figura.

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Obs. Caro leitor, faça um comentário ou, pelo menos, deixe seu nome para que eu, em contrapartida, possa também ler o seu trabalho.
HFigueira
Enviado por HFigueira em 15/02/2012
Reeditado em 09/11/2014
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