O FILHO DO CAPELÃO

O FILHO DO CAPELÃO

As tardes de inverno do ano de 1882 eram úmidas e geladas. Na frente da Igreja de Nossa Senhora da Piedade ficavam 5 ou 6 homens sempre a conversar, pegando os últimos raios de sol que abraçavam o morro e desapareciam entre as árvores, deixando apenas o vermelhão lindo no céu. A armação Grande das baleias que um dia despontou como o maior pólo de captura e industrialização dos cetáceos ficara esquecido entre as belezas que permeavam todo aquele lugar. Se fosse a mão da mãe natureza que desenhou belas praias e deu vida a tanta beleza guiada por Deus, ninguém daria nada por aquele local que mantinha o mau cheiro dos tanques com restos de carne de baleias. O desprezo era geral num local onde a coroa arrendou e obteve grandes lucros à custa dos negros escravos. Nada sobrou daquela época de ascensão, apenas meia dúzia de negros com suas famílias que viviam a sorte de hoje ter o que comer e amanhã não saber o que colocar no prato.

A igreja construída em 1745 olhava em direção ao mar e na frente à Santa Cruz debruçava sua sombra todas as manhãs nas águas salgadas da Armação. Ninguém mais vivia por ali. Até João da Cruz, o Capelão, abandonou seus fiéis.

Um dia sem que ninguém esperasse, o Capelão da Armação entrou numa piroga e com apenas um remo tomou rumo em direção à fortaleza de Santa Cruz do Anhatomirim. Alguns insistiam em dizer que a piroga foi encontrada emborcada perto da entrada da ilha, outros diziam que o velho Capelão construiu uma casinha e morava no sul da ilha do Desterro. Sabe-se apenas que os moradores da Armação ficaram sem qualquer assistência, inclusive espirituais

No dia de Santa Rosa de Lima, dia 23 de agosto, o sol mostrava suas façanhas durante todo o dia, mas já à tardinha, como sempre, se despedia dos velhos negros que ficavam sentados na calçada da velha igrejinha.

Negro Marujo contava suas histórias e os outros ouviam com atenção. De repente, a atenção dos homens é interrompida por choros de uma criança. Choro que veio do lado do muro do cemitério. O cemitério faz parede com a igreja e no muro da frente está sentado um pequeno tumulo, uma “catacumba” como diziam os negros da Armação.

Ninguém sabe ao certo, se ali foi colocado um pequeno caixão.

Contam que Antonio Quitinha, sujeito meio valente, um dia cismou em tirar o tumulo de cima do muro. Pegou picareta e largou-se pra lá. Coitado, nem chegou ao local. Dona Joana, sua mãe, incansavelmente repetia que seu filho fora levado desse mundo pelas almas do purgatório.

Outro que pagou para ver foi Francisco José de Pinha. Este com uma pá caiu esticado na frente da igreja. Contam que arregalou os olhos para o alto e num instante se apagou para sempre.

Os choros que os homens ouvira não fora a primeira vez e nem a última. Muita gente testemunhou que bem na hora da Ave-Maria, todos os dias, a criança chorava para que a reza alcance o céu.

Negro Marujo até fingia que não ouvia, mas a corrida dos colegas para bem longe da igrejinha acusava algo de estranho. Foi aí que no outro dia cedo, as conversas se espalharam e quem já sabia ficou bem quietinho para não dar o braço a torcer e dizer que correu de medo. Os que não sabiam se preveniram para não passarem em frente ao local à tardinha. Mas a inquietação dos homens foi além das conversas. Foram buscar resposta com o negro Filó que morava na praia das cordas, no outro lado da Armação.

Filó tinha mais de noventa anos e sempre ouviu falar que o Capelão saiu dali corrido por não aguentar mais ouvir dia e noite o choro da tal criança. Filó afirmou que sua mãe, a escrava Marieta, viu a negra Carmita junto com os pais e seus irmãos colocarem a criança morta ali. O pai de Carmita fez traço de areia da praia com óleo de baleia e construiu em cima do muro o túmulo da criança.

Quando perguntaram se o Capelão não se opôs ao feito, Filó respondeu:

- Ele nem apareceu na hora. Carmita tinha coração machucado e por isso se enforcou. Mas antes deixou o filho morto bem pertinho do pai que lhe negou batizado. E essa criança chora porque morreu pagã, sem batizar. O Capelão não aguentando tamanha dor de consciência resolveu desaparecer sem dizer a ninguém para onde ia.

O Capelão era o pai da criança.