O susto do mascate e suas freguesas

 

Meu tio Jacob tinha um armazém de secos e molhados numa localidade da região metropolitana, em cujo balcão ele e sua mulher, uma das irmãs da minha mãe, entregaram a juventude e fizeram a vida.

 

Era um desses armazéns de antigamente, onde era possível comprar quase de tudo. Dos gêneros para o rancho do mês ao querosene para o lampião, passando pela pinga de cada dia. Se a bicicleta quebrava, tinha a peça certa. Para dar uns tirinhos no mato, havia pólvora, chumbo e espoleta. Também era possível sair com os cabelos cortados, barba raspada e bigode aparado, porque na sala ao lado meu tio dava-se ao ofício de barbeiro, enquanto minha tia Miloca não se descuidava das vendas.

 

Luz elétrica no começo não existia. Muitos anos depois estenderam a rede e o armazém iluminou-se e ganhou geladeira. Até então, cerveja e gasosa eram refrescadas no porão. E funcionava. Presenciei muitas vezes fregueses sedentos chegarem e pedirem, mesmo depois da luz elétrica:

 

- Jacob, dê uma cerveja. Mas do porão...

 

Meu tio abria a tampa basculante no assoalho e tirava lá do fundo do buraco a cerveja fresquinha.

 

Negociante desde sempre, cada mercadoria tinha o preço de custo marcado em código. Desse modo ele sabia seu limite quando o freguês pechinchava. Era o código do Jacob, que um dia ele me revelou. Assim como me ensinou a lidar com o dinheiro na gaveta cheia de repartições para as notas.

 

- As notas que o freguês lhe der, ponha aqui na divisão horizontal que, de propósito, é a maior e a primeira. Das outras divisões tire as notas do troco. Vá entregando uma a uma, da de menor valor para a de maior, e exija que ele confira tudo. As notas que ele entregou permanecerão dentro da gaveta aberta, e à vista dele. Quando ele confirmar que o troco está correto, feche a gaveta, mas deixe as notas no mesmo lugar. Quando outro freguês for pagar, abra a gaveta, coloque as notas anteriores nas repartições correspondentes ao valor de cada uma e só então pegue as novas da mão do novo freguês e coloque-as na divisão horizontal. Daí em diante você já sabe.

 

Meu tio Jacob poderia ser um consultor de organização e métodos. Tinha critério e método para tudo. Organização impecável. As normas estavam na sua cabeça, tim-tim por tim-tim.

 

Por vezes demonstrava zelo exagerado. Na garagem, foi mostrar-me alguma coisa embaixo da sua impecável picape Chevrolet 1951. Apoiei-me em um dos para-lamas dianteiros e olhei. Quando me levantei, levei uma grande e educada bronca. Com uma flanela apressou-se em limpar as marcas dos meus cinco dedos que haviam ficado na pintura brilhante do carro. Explicou-me que para examinar a parte inferior de um veículo não era necessário colocar as mãos na lataria. Bastava acocorar-se, apoiar as mãos no chão e olhar. Nada mais.

 

Quando visitávamos o tio Jacob e a tia Miloca, normalmente chegávamos cedo para passar o dia. Às vezes os pegávamos no café da manhã e eu aproveitava para fazer uma boquinha com polenta e linguiça assadas na chapa do fogão a lenha. Mas não muito, para não empanturrar, ensinava o tio Jacob. Enquanto tomávamos o café ele ia contando os últimos causos da freguesia ou dos moradores do lugar. Muitos dos quais com sua participação efetiva. Contava e se divertia, levando-me a muitas gargalhadas, como o do mascate e suas freguesas, que ele quase matou de susto.

 

O cachorro de um freguês deu para ir todos os dias ao armazém marcar seu território. Sem cerimônia nem pudor, o desavergonhado mijava nos sacos de batata e cereais, que ficavam expostos do lado de fora do balcão para fazer gosto aos olhos da freguesia. O bicho saía de lá sob corridões, mas no dia seguinte voltava. Tinha até hora certa. Meu tio ficava na espreita e sempre que podia o atropelava antes de ele esguichar nos sacos.

 

Um dia o tio Jacob resolveu mudar de tática. Avisou o dono que iria cativar a confiança do animal para depois dar-lhe um susto inesquecível. O caboclo que não se preocupasse, pois não iria machucá-lo. Com isso esperava que o atrevido deixasse seu armazém em paz.

 

Assim, todos os dias o cachorro era esperado com uma fatia de salame ou linguiça. Pequena, porque o tio Jacob não era de cometer desperdícios.

 

No começo, ele ficava desconfiado, sem saber se podia avançar para pegar a aromática iguaria ou não. Farejava de longe e morria de vontade, mas tinha medo. Meu tio o chamava e encorajava. Com o rabo entre as pernas, rapidamente pegava a fatia jogada no chão e dava o fora. Com o tempo já vinha buscá-la na mão. Mais um pouco e já eram amigos. Ele vinha com o rabo abanando e o tio Jacob já podia passar a mão na cabeça dele. Ganhava a linguiça ou salame e ia embora feliz da vida.

 

Conquistada a amizade e confiança do cachorro, o tio Jacob passou para a segunda e última fase do plano. Em um metro de barbante prendeu algumas bombinhas de São João, espaçadas entre si, e amarrou uma ponta do artefato na cauda do animal, ao mesmo tempo em que o acariciava. Juntou em uma das mãos todas as bombas, formando um único maço, de maneira que com a outra pudesse acender os pavios de uma só vez, com cautela para mantê-lo calmo e preso junto ao corpo, enquanto possível. Com o polegar direito girou a roldana do isqueiro, ateou fogo ao artefato e soltou o bichinho.

 

Assustado ao perceber os pavios chiando e faiscando, o cão saiu em disparada e foi buscar abrigo justamente embaixo do carro de um mascate que estava estacionado do outro lado da rua, rodeado de senhoras animadas com as novidades que ele trazia. Vestidos, sapatos, botas, lenços de cabeça, calças para os maridos, anáguas e combinações, panelas, chapéus, jogos de cama e mesa, enfim um mundo de artigos pessoais e para o lar. Cada freguesa com alguma coisa nas mãos, examinando e especulando. Pois tudo isso foi largado aos ventos quando as bombinhas começaram a explodir embaixo do automóvel e todas elas correram apavoradas, seguidas pelo próprio mascate.

 

O tio Jacob, quando percebeu a direção que o cachorro explosivo tinha tomado, colocou as mãos na cabeça e postou-se na porta do armazém para apreciar o estrago.

 

- Dio Santo, ma che cosa ho fatto!

 

O mascate não demorou nada para entender o que tinha acontecido e ter certeza de quem fora o autor da travessura. Antes mesmo de tentar reunir novamente as senhoras e recolher a mercadoria espalhada, abriu largamente os braços e esbravejou a plenos pulmões, com seu acentuado sotaque hebraico:

 

- Italiano maluco! Quer me matar de susto?


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N. do A. - Na ilustração, imagem captada em abril de 2011 da casa onde funcionou durante muitos anos o armazém do meu tio Jacob Brunetti, na localidade de Laranjeira, município de Piraquara, Paraná. A ele e à tia Miloca, ambos do outro lado da vida, com profunda saudade presto minhas homenagens por todo carinho que me deram e pelo muito que me ensinaram.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 02/03/2012
Reeditado em 26/08/2023
Código do texto: T3530579
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