O Cúmulo do Kitsch

Martinha olhava muito atenta a decoração da sala de sua tia para o Natal. Adorava entrar naquela casa, porque a casa era muito grande, bem maior que a dela. Na sala, haviam muitos tapetes e sofás imensos e confortáveis. No canto, um imenso pinheiro de plástico que ela na verdade nunca entendeu o porquê daquilo estar ali, pinheiros não crescem na região onde ela mora e em toda sua vida nunca tinha visto um de verdade, mas sendo feito pro Natal achava bonito, todas aquelas bolas coloridas e fitas de vermelho vibrante com homenzinhos de neve pendurados, apesar de na sua cidade nunca ter nevado em quinhentos anos.

Havia também uma estrela no topo da árvore que ficava piscando sem parar a noite inteira e um caminho de papel brilhoso de dez metros, com fitas coloridas ao redor da grande árvore, a fita acabava na mamãe noel de óculos que mexia a cabeça e ficava no chão, guardando os presentes. Uma vez, movida por aquele sentimento de assombro, Martinha acordou-se em plena madrugada só para dar uma espiada naquele cenário: a árvore, aquelas luzes todas piscando, a sala apagada, aquele mistério no ar...

Ela era pobre, seus pais tinham em casa um pinheirinho pequeno, comprado nas lojas americanas durante uma liquidação, os enfeites de Natal tinham milênios, uns até quebrados ficavam na caixinha para o ano seguinte, por isso ir para a casa de sua tia era o espetáculo do ano, era com grande expectativa que ela aguardava aquilo tudo.

Martinha também gostava do céu na época de Natal, era um céu diferente, havia um clima de final de alguma coisa, uma sensação de despedida, um sentimento que beirava bem de leve algo que morre, e que a deixava meio pensativa, mas logo vinha a imagem do peru, a imagem das sobremesas e dos presentes que ganharia e a visão dos primos sorrindo felizes, e claro, aquela pessoa misteriosa que entrava na sala dizendo HO HO HO para distribuir os presentes à meia noite quando a missa do galo começava, e as pessoas ligavam a TV indo jantar depois.

Essas lembranças faziam Martinha esquecer coisas que sentia no final de ano, mesmo pequena ela já sentia esse algo, era um algo incomum mas esse algo ficava ali, como a árvore no canto da sala. Ela observava seus avós durante a festa e vía que já estavam bastante velhinhos, e com o pensamento de que eles poderiam não estar mais ali no ano seguinte vinham as imagens dos anjinhoss, dos duendes e os papéis coloridos.

Ela gostava muito da história da Menina dos Fósforos que é uma hisstória que se passa em época de Natal, mas fala de uma menina muito pobre que perde a avó e morre de frio, achava aquilo bonito mas também meio triste e preferia pensar no peru. Costumava ficar bem quieta e com cara de quem olha uma paisagem durante toda a véspera do Natal. Pensava no Papai Noel e naquela charrete voadora saindo do frio dos pólos e a fábrica de brinquedos onde os duendes trabalhavam a noite inteira. Ela fêz uma cartinha para o velho, logo de manhã, para dar tempo dele ler e deixou na janela dentro de seu tênis usado, queria um tênis novo, que não precisava ficar passando cola por cima para durar, queria aquele brinquedo novo da TV, dizia que gostava muito do Papai Noel e que ele não demorasse por favor. Na carta ela também agradecia e dizia que ele era muito bonito.

Foi quando na noite de Natal, a festa no ápice da emoção, entrou a pessoa misteriosa na sala de sua tia, era ele, o Papai Noel! Fazendo seu HO HO HO, ele sentou do lado dela e falou muitas coisas bonitas, foi quando no meio do discurso ela flagrou embaixo do chapéu dele vários fios de cabelos pretos! OH!! Não... como assim? Você não é o Papai Noel! O homem empurrou a mão dela com raiva e sussurou que deixasse ele em Paz. Ela levantou-se revoltada e saiu, trancou-se no banheiro. Seu sonho em instantes descia pelo ralo da pia que ela observava atentamente. À meia noite ouviu a mãe chamar de longe, era a hora da distribuição dos presentes. Não conseguia deixar de pensar que aquilo foi a maior decepção da sua vida. O homem misterioso não era Papai Noel! Fora enganada, como podem haver dois deles? O do Shopping Center então, quem era? Sua cara de paisagem sumiu, dando lugar a uma cara estarrecida que olhava o ralo da pia no banheiro.

Na hora dos presentes, entregues um por um pelo agora falso Papai Noel, que dizia bem alto o nome de quem era o presente quase assustando as pessoas, ela sentou-se no grande sofá confortável junto com os primos e com gestos de decepção esperou resignada. Ficou com vontade de rasgar as roupas dele, aquele homem gordo e grande parecia uma gelatina que se derretia aos poucos com o calor, perdendo a própria forma e sentido.

Os primos ganhavam um, dois, três presentes. Até que chegou o seu, era bem colorido. Ela recebeu das mãos do falso Papai Noel que disse HO HO HO Martinha! HO HO HO. Ela olhou pra ele e bem séria abriu a caixinha devagar. Era uma caixinha bem desenhada e embrulhada, quase não abria de tão bem lacrada, viu o que tinha dentro: uma roupa, uma camisa com a mesma estampa de um pijama que recebeu no Natal do ano passado, mas desta vez, era uma camisa cacharrel, branca com bolinhas coloridas. Não acreditou naquilo. Sua mãe, vendo a cena puxou ela de canto e foi falando baixinho, despejando aquela lição de moral: - Isso aí eu sei, ela ganhou de alguém e tá repassando pra gente, que mesquinharia... Martinha sentou-se ao lado da mãe sem dizer uma palavra, pegou a camisa, dobrou a roupa sem saber o que fazer. Dobrou como que querendo esconder o presente, viu que o tio a olhava meio sem jeito, talvez porque ela estivesse sem jeito, sem saber onde botar as mãos ou a cabeça. Ficou com vergonha. Chamou a prima e mostrou a camisa, as duas riram escondido, e muito. Começaram a dar funções imaginárias pra roupa. Quem sabe um palhaço de circo a usaria? ou poderia dar para a empregada que todos humilhavam porque só vestia roupas feias e nem cabelo tinha pra usar sequer um elástico colorido de enfeite.

Os sonhos de Martinha estavam no chão naquela noite, mas ela libertara-se de algo que não sabia o que era. Ela sentou-se no terraço com a camisa de bolinhas coloridas no colo e olhou o céu, e o céu chamou sua atenção, ficou ouvindo os grilos e sentindo o vento frio no rosto. Não havia mais Papai Noel algum, nem presente bom. Todos andavam pela casa bem vestidos e comendo sem parar. A TV ligada mostrando a missa do galo para ninguém exceto as paredes, as luzes piscando, seu olho piscava, as estrelas do céu piscavam, e eram bem mais bonitas, ela estava tendo quase uma vertigem, tudo girava na sua cabeça como num imenso carrossel. Sabe, aquilo não podia ficar assim. Fora enganada. Pensava.

No dia seguinte ela despediu-se dos tios e primos com desgosto e foi para casa pensando enquanto acompanhava o caminho de volta através da janela do fusca. Concluiu por fim que tudo aquilo era o cúmulo e planejou uma vingança.

Mila Mariz
Enviado por Mila Mariz em 11/03/2012
Código do texto: T3548971
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