Entrevista com o vintecentenário

A secretária avisa ao estagiário que o editor-chefe vai recebê-lo. O jovem adentra na sala:

- Pode sentar-se, Artur.

- O senhor me chamou, senhor Marcelo?

- Chamei sim. Estava aqui analisando seu currículo, lendo as referências dos artigos que você escreveu na faculdade de jornalismo, e pensei que você poderia escrever uma coluna sobre longevidade para nossa revista de saúde.

- Uau! Você está me pedindo para escrever uma coluna? Para mim será uma honra.

- Certo, certo. Mas, de qualquer forma, a matéria é a seguinte: Descobrimos convenientemente que aqui mesmo na cidade vive um senhor de cento e vinte anos de idade, e quero que você realize uma entrevista com ele, descubra seu segredo de vitalidade, de saúde na terceira idade, e se você tiver êxito, você não será mais um estagiário, fará parte de nossa família de jornalistas.

- Fico muito agradecido, senhor Marcelo. Apronto-me agora mesmo. Mas, senhor, por que nenhum outro jornalista quis essa entrevista?

- É porque o velho é muito chato. Boa sorte.

- O número da casa é este mesmo, Lucão. Então fica assim, eu entrevisto o velho e você filma. Depois a gente edita junto, como fazíamos na faculdade, beleza?

- Combinado, Artur.

- Quem é que está aí?! – Alguém grita de dentro da casa. E continua: - Não tenho pão velho hoje, não. Saiam ou eu chamo a polícia!

- Seu Getúlio? É o senhor? Aqui é da revista Saúde & Família. Nossa equipe ligou para o senhor para realizarmos uma entrevista sobre longevidade. Eu me chamo Artur, e esse é o Lucas. O senhor disse que poderíamos vir.

Após alguns segundos, aparece o carrancudo vintecentenário, em uma cadeira de rodas, mascando fumo, locomovendo-se com dificuldades.

- Desculpe-nos, senhor. Não sabíamos de sua dificuldade.

- Isso não é nada, foi só um acidente que sofri semana passada, quando uma carreta me atropelou, mas estou bem. Foi só uma luxação na bacia. Agora, mostrem seus crachás de identificação. – Solicitou. – Hum, deixem-me ver. Revista Saúde... Lucas Parente... Artur Serapião... Hum, eu conheci uma Serapião na minha juventude, Amaltéia Serapião.

- Sério? Ela foi minha bisavó! Bem, podemos começar? Seu Getúlio, o senhor pode nos dizer como se sente aos cento e vinte anos de idade?

- Peço aos céus todos os dias para que eu morra.

- Ah, sei. Mas qual seria o segredo do senhor ter vivido tantos anos?

- Eu vou lá saber! Tenho cara de guru?

- Seu Getúlio, que espirituoso, mas, diga-me, então, como é a sua alimentação?

- Eu como fritura e gordura todo santo dia, bebo dois litros de café toda manhã, tomo pinga toda a noite.

- Eita. E alguma fruta?

- Mamão. Mas me dá uma caganeira... Com licença, vou fumar um cigarro.

- Ah, o senhor fuma?

- Desde os meus onze anos de idade. Dois maços por dia.

- E nunca passou mal? Nenhuma vez?

- Já passei mal um par de vezes, sim. Mas aí eu tomava meus uísques e sarava. Ah, como era bom. Eu me divertia muito quando tinha a idade de vocês.

- Então o senhor pelo menos tinha uma vida ativa.

- Vixi, se tinha. Jogava carteado o dia todo no bar. Ganhava um dinheirinho e saía com todas as putas do bairro. A que eu mais gostava era da sua bisavó. Ô, safada.

- Seu Getúlio! Por favor! Creio que não podemos utilizar deste linguajar em nossa revista. E minha bisavó?! Francamente.

- Agora que eu reparei, até que você me lembra ela, com essa boquinha vermelha de moça, esse narizinho.

- Escuta aqui, seu Getúlio, eu não vim aqui para ser ofendido, eu exijo respeito.

- Fala baixo, peste. Você vai acordar o meu filho. Depois não é você que vai dar mamadeira para ele, né.

- Como é que é? Dar mamadeira? Que idade o seu filho tem?

- Três aninhos.

- O senhor tem cento e vinte anos e tem um filho de três anos?! Como explica isso?

- Fiz com a empregada. Eu estava sem nada para fazer no dia. Daí ela engravidou.

- Seu Getúlio, o senhor está me dizendo que, contrário a toda medicina da vida saudável, teve uma vida de sedentarismo, orgia, jogatina, nicotina, café, álcool, e conseguiu milagrosamente viver até essa avançada idade, e que ainda pode ter filhos? Sinceramente, isso é piada. O senhor está de sacanagem com a minha cara. O senhor não é um presente da genética, o senhor é um baita de um mentiroso. Eu estou perdendo o meu tempo aqui.

- Já vai tarde. E sorte sua que estou nessa cadeira de rodas, senão eu ia te dar uma surra agora mesmo. – Avermelha-se o velhinho.

- Não me faça rir. Você é louco! E não passa de um contador de histórias. Eu devia era...

Lucas o interrompe:

- Artur, o senhor está ficando nervoso, você não devia ter provocado ele. Ele agora está até tremendo. Ele está tendo um derrame, Artur! Rápido, chame uma ambulância!

A viatura chega rapidamente. O senhor Getúlio é levado para o hospital em estado grave. Os médicos diziam que ele entraria em coma.

- Artur, acho que você vai finalmente cumprir o desejo do velhote, porque ele vai morrer.

- O que foi que eu fiz! Rápido, vamos voltar para a editora. O Marcelo precisa saber. Eu me responsabilizo.

Marcelo já estava à espera de Artur. Seu chefe o informa que o senhor Getúlio ligara do hospital assim que ele chegou e, felizmente, o senhor encontra-se já de alta, fora apenas um derrame seguido de enfarto, mas que sua saúde está ótima, porém, teve sérias queixas sobre o comportamento do jovem. O editor-chefe pede primeiro para falar com Lucas, enquanto Artur aguarda na recepção ansiosamente. Após quase meia hora, Lucas sai da sala. E pede para Artur entrar. Artur desabafa para o amigo:

- Essa confusão toda foi por causa daquele velho lazarento. Aquele velho é um demônio. Você acredita que ele fuma dois maços de cigarro e bebe dois litros de café por dia, bebe pinga, é atropelado e consegue estar vivo e lúcido até hoje, enquanto eu tomo vitaminas para suplementar minha alimentação?!

- Mas você não foi muito legal com o velhinho. O Marcelo pediu para você entrevistar o Seu Getúlio e não para provocar um derrame nele.

- O Marcelo ficou muito bravo?

- Opa. Aliás, você foi despedido. Mas isso não é o pior. Você não sabia que o Seu Getúlio além de tudo dá aula de capoeira em uma academia em Santa Fé? E ele está lá fora, na porta da editora, esperando você sair e disse que finalmente vai te encher de porrada.

Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 31/01/2007
Reeditado em 30/05/2008
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