Olhos de ave de rapina

Era fria aquela tarde de domingo. Ao longe, no horizonte, era possível se ver uma cruz. Do céu, cinza e pesado, vinha uma brisa amena que balançava os galhos e as folhas das árvores que margeavam a pequena estrada de terra batida. A cruz ficava cada vez maior. O pranto da multidão que seguia a sege embrenhava-se mata adentro. Muitos vestiam preto, alguns usavam óculos escuros e outros poucos vertiam lágrimas. O corpo daquele que fora o homem mais poderoso da região oscilava agora inerte e inofensivo.

A capelinha surgiu em meio às sinuosas e ressequidas árvores do cerrado. O vigário pediu licença ao cortejo e, saltando do coche, adentrou-se na ermida. Imediatamente, desceram o morto e o colocaram no ataúde, que já o esperava lá dentro. Havia teias de aranha e poeira por toda parte. Aquele não parecia ser um local muito frequentado.

Uma jovem linda mirava o defunto de longe. Tinha olhos de ave de rapina. Sob o véu negro, exprimiam um sentimento implacável.

_Meus queridos irmãos, este pobre homem foi vítima de sua própria bondade. Que sua alma descanse em paz! – disse o padre, abrindo então a cerimônia.

_O que seria dessas redondezas se não fosse o nosso grande coronel Carvalho? Homem bom, compadecido dos sofrimentos do povo...

E continuava seu discurso em meio à aprovação de alguns e à discordância de muitos.

A moça com olhar de águia piscou dissimuladamente para um homem chucro e saiu. Ele a seguiu. Lá fora, um vento forte tomara o lugar da brisa mansa e uma leve chuva começava a precipitar. Raios cortavam o céu.

_Conseguimos Amarildo! Todos pensam que foi assalto! - balbuciou a moça com a voz arrastada, lembrando o som de um rádio fora de estação. _Tudo isso será nosso!

Ele não disse nada. Apenas sorriu. Quis abraçá-la, mas ela o empurrou, balançando a cabeça.

_Você está doido, homem! E fique longe de mim nestes dias! Não podemos dar bandeira! – sussurrou, enquanto voltava ao posto de viúva.

Depois do funeral, a chuva havia se transformado em temporal. Celina foi conduzida à carruagem que a levaria de volta ao casarão. Seus pensamentos eram como um vórtice de sentimentos, onde só não cabia o remorso. Agora ela seria a mulher mais rica e poderosa do distrito, graças aos papéis que seu cônjuge assinara havia poucos dias, satisfazendo sua pertinácia. Conseguira até incluir o nome de seu amante, com a desculpa de que, se morressem juntos, não haveria herdeiros. Como nunca tiveram filhos e Amarildo sempre fora seu fiel escudeiro, o coronel de pronto concordou.

A chuva caía torrencialmente. Raios e trovões cada vez mais intensos. Já era noite. A carruagem se aproximava de uma pequena ponte de madeira que cruzava o Rio das Almas. Suas águas quase beijavam a ponte. Quando a travessia começou ouviu-se o rincho desesperado dos animais, sucedido de um estrondo na água. O clarão de um raio tornou visível a expressão viva e aterrorizada da viúva pela última vez. Logo, a sege desapareceu sob as águas. Por detrás de uma árvore à beira do rio, surge a imagem de um homem chucro. Seus olhos espremidos refletiam o brilho dos relâmpagos que rasgavam o céu e seu gargalhar parecia sobrepujar o fragor dos trovões.

Na manhã seguinte, ao lado do corpo fresco do coronel Carvalho, foi depositado o de sua viúva, ainda encharcado.

Trinta e cinco anos depois, na mesma capelinha:

_ O que seria dessas redondezas se não fosse o nosso grande coronel Amarildo?

Jack Cannon
Enviado por Jack Cannon em 27/05/2012
Reeditado em 03/09/2018
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