O Causo da Dona Lucia

Esse causo aconteceu na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem por essas bandas.

A Dona Lucia era conhecida na comunidade pela sua beleza deveras extasiante, tinha os cabelos pretos, lisos e compridos caindo pela cintura e que balançavam ao menor movimento da cabeça. Todo mundo queria pegar naqueles cabelos. Mas ela não deixava e também não deixava nenhum homem se aproximar, não era dada a namoros e dizia “que ainda estava no ovo o galo que ia tirar ela de casa”.

Quando ela passava pelo comércio, os homens solteiros saíam à soleira para apreciar tão juvenil beleza índia e os casados ficavam espiando pelas janelas, causando uma ciumeira danada nas mulheres casadas e nas namoradeiras.

O pai de Dona Lucia – era chamada assim pelo respeito que impunha e não pela idade – não aguentava mais despachar os candidatos mediante a negativa da moça, até que foram espaçando os pedidos de namoro, casamento e, pasmem, até de ajuntamento por um moço casado de Faxinal. Foi a gota d’água que faltava para que se fechasse de vez o coração da bela Lucia, quero dizer, Dona Lucia.

Num dia de inverno, voltando da mercearia, Dona Lucia sentiu uma soneira dos diabos e correu de volta para casa para dormir um tico e depois voltaria aos seus afazeres, pois não costumava deixar a mãe sozinha na luita doméstica. Chegou em casa, deitou na cama e dormiu.

Quando foi a noitinha o pai deu a falta da menina, perguntou e chamou para que ela fosse à mesa jantar. “Tá dormindo, a coitada” disse a mãe toda prestimosa. “Deve ter se cansado, deixe dormir, se ela sentir fome ela come depois”. Jantaram os pais e os oito irmãos, todos varões e depois do jantar foram para fora da casa fumar um palheiro e comer doce de abóbora, aproveitaram também para provar o vinho que o vizinho tinha feito naqueles dias e que parecia estar no ponto. A mãe ficou lidando com a louça na cozinha e reclamando que o sabão estava no fim.

Na manhã do dia seguinte, com a geada cobrindo tudo, foram se levantando um a um, mas nada da Dona Lucia acordar. “Deixe ela dormir mais um tantinho”, dizia a mãe “depois eu acordo ela para a lida”. Mas chegou a hora de tirar o leite das vacas e tratar as galinhas, a Dona Lucia ainda estava dormindo e mesmo depois de muitos chacoalhões ela continuava em seu sono. A mãe começou a ficar assustada e a gritar convulsivamente, e quando o pai e os oito irmãos chegaram, a mãe chorava a plenos pulmões.

“Ela está morta?” pediram.

“Não, veja, ela tá quentinha da silva”, disse a mãe entre soluços.

“E porque ela não acorda?”, disse o quinto irmão.

“Deve estar com algum mal”, o pai intercedeu. “Vou chamar o protético”.

“Chame um médico homem, o que vai fazer aqui um protético?” disse a mãe.

“O médico não vem mais nesse mês”, disse o primeiro filho varão.

A mãe angustiada resolveu esperar o protético e até que ele não chegasse, resolveu chamar as benzedeiras que chegaram rápido e em conluio e muito cochicho chegaram a conclusão que o mal da Dona Lucia, benzedeira nenhuma curava, mas fizeram uma corrente, acenderam algumas velas e entregaram nas mãos do protético, dando graças que assim, os maridos não teriam mais a quem olhar a não ser elas mesmas.

Este chegando, ficou estupefato pela beleza incomum da morena e por alguns minutos esqueceu o que fora fazer ali, até que o quarto irmão deu um cutucão nas costelas do protético que voltou a si e começou o exame. Fazia aquilo com uma minúcia e um medo de que a qualquer momento ela fosse se quebrar. Mal ousou abrir o botão do casaco para auscultar-lhe o peito com os ouvidos e enfim diagnosticou: “Está morta, mas esperem até amanhã que o corpo estará frio para enterrá-la” e virando para o pai choroso “São duas galinhas, senhor”.

A mãe não acreditou no embuste. “Decerto que protético não sabe o que fala, cuida da boca dos outros e não cuida do que sai da sua, e ainda levou minhas melhores poedeiras”. Resolveu esperar o corpo da filha esfriar e chamou o padre.

O padre não acreditava no que via e perguntou então há quanto tempo ela estava dormindo. “Cinco dias hoje, seu padre, e não esfria.” O padre resolveu dar um fim naquele invelório e mandou o coveiro buscar a moça, não sem antes dar uma última olhada naquele rosto angelical e chamar o barbeiro para os retoques finais.

Então veio o dia que a Dona Lucia seria enterrada. Fizeram fila para dar o último adeus enquanto o padre rezava as jaculatórias finais. E também todo mundo queria tocar nela para sentir se tinha esfriado ou não. Dona Lucia ainda estava quente, como viva, como uma morta viva.

O caixão baixando na terra foi a visão mais triste que se teve notícia desde então e quando encostou na terra fria e gelada ouviu-se um “toc toc”. Todo mundo empalideceu e emudeceu e alguém lá no fim da fila desmaiou.

“Toc Toc”

“Toc Toc”

O coveiro agitado e nervoso já estava subindo e se agarrando pela terra do buraco.

“Abre aí”, disse o pai do alto do buraco.

“Eu não abro, não senhor”, disse o coveiro patinando no buraco e se agarrando nas pernas das pessoas que estavam na beirada para escutar melhor.

“Toc toc”

“Pois eu abro” disse o pai se enchendo de coragem e esperança de que a filha estivesse ainda viva dentro do caixão. A maioria já tinha escapado do cemitério e estava do outro lado da rua perguntando a todo o momento o que era aquela bateção. As beatas ficaram abanando o rosto da mãe que desfaleceria a qualquer momento. Os oito irmãos desceram na cova para ajudar o pai a abrir o caixão.

Quando o pai e os oito irmãos conseguiram abrir o esquife, foi uma exclamação generalizada. Não havia nada no caixão. Um amontoado de roupas, pedras e objetos de peso estavam lá, mas nada da morta.

A mãe e as beatas acabaram por desmaiar e o pai desolado jazia de ataque cardíaco, não aguentou o tranco e por fim usou o ataúde da filha para seu próprio e a confusão de coisas e sentimentos levou o prefeito a decretar luto civil por três dias. Até o governador veio para a Campina para dar o fato por verídico.

Acontece que o sexto e o quarto irmão não podiam se esquecer do “toc toc” que ouviram e não descansaram até não encontrar o que causou o descobrimento do mistério do desaparecimento da irmã morta e a morte do pai. Eu soube que até a morte eles ainda não tinham descoberto o que tinha sido e isso foi contado aos filhos e aos filhos dos filhos.

Depois de muitos anos enfim, soube-se a verdade quando da morte do barbeiro. O barbeiro já estava na casa dos sessenta anos e há muito doente de sífilis. Encontraram o corpo dele estendido na cama, nu.

Ao lado dele um caixão de vidro com a Dona Lucia dentro, em perfeito estado de conservação, também nua e quente.

Michele CM
Enviado por Michele CM em 28/05/2012
Código do texto: T3692036
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