Deus visita o sertão 3

Deus visita o sertão 3

O grunhido do carcará era quase inaudível. Todos estavam fracos, não tinha mais jeito.

A terra seca batida, já rachada pelo sol, emanava fumaça logo cedo, consumindo o pouco de umidade que a noite havia presenteado aquele lugar. Santo Antônio da boca do mato, a 500 quilômetros de Salvador, parecia a boca do inferno, quando o sol teimava em estender-se dia após dia, secando os açudes, queimando a relva, e acabando com a esperança do povo.

A família de Nicodemus, ou o que sobrou dela, persistia em continuar naquele lugar, um dia, contaram 20, naquele tempo já eram menos de 9, pois a pequena, não podia nem contar como 1 de tão esmirrada que era.O tio João já fazia anos não respondia uma carta sequer, havia saído da cidade, com a pouca economia da família, para procurar emprego em São Paulo, alugar uma casa, e levar seu povo todo daquela secura.No dia da partida, fizeram até festa, dona Sebastiana, ou Tiana , para os íntimos, fez até um bolo de milho, olha que a danada saiu de casa, antes do sol, andou cerca de 10 kms para comprar o milho só para fazer a surpresa, porque na cidade há muito tempo que não viam crescer nada, a terra , antes fértil, não passava de pó, os antigos diziam que havia passado um cometa tão forte que espantou toda a água de Santo Antônio da Boca do Mato em uma só noite, e todo o milharal virou um monte de pipoca, é claro que esta história era só para encantar as crianças que acreditavam bravamente que um dia a paisagem poderia mudar.

A casa de Nicodemus já fora um dia, uma das maiores da região, tinham orgulho de ter seis quartos, coisa de rico naquele lugar, e todos trabalhavam muito, conseguiram até comprar um caminhão e seu Francisco orgulhava-se em dizer que aos doze anos, Nicodemus já sabia até guiar,até que veio a seca, o açude não sangrava mais, aos poucos os risos nos quintais, foram dando lugar ao choro, os animais já não podiam ser ouvidos, e o único som que ficara no ar, era o som do capim seco estalando, doido para queimar de vez e dar fim até mesmo a seu próprio sofrimento.

Nicodemus era jovem, tinha 20 anos, o mais velho dos meninos, um orgulho na família, rapaz trabalhador, que cuidava bem das vacas, queria estudar veterinária, quando era criança, mas, a lida não permitiu o avanço nos estudos, a distância da escola somada ás árduas horas, cuidando do rebanho da família só lhe renderam a falta de dentes na boca, muitos calos, e muita esperança de um dia ver sua realidade mudar.Olhava o quintal ouvindo o som bem baixinho do carcará sobrevoando Negra e Pérola, as duas últimas vacas vivas da propriedade, há menos de 1 mês, havia se deleitado na carcaça de Sultão, o último boi que morreu; e suas costelas ainda estavam em frente a porta da cozinha, na esperança de atrair um bicho maior que pudesse servir de alimento por alguns dias,e adiar a morte da vaca Negra, mas , de nada adiantou, parecia que somente sua família havia sobrado naquele lugar.

Os irmãos foram morrendo um após o outro, como uma escadinha, sem comida, sem água, simplesmente a alma abandonava o corpo quase que voluntariamente, como se a magreza pudesse flutuar.

O pai na mesa, já não tinha coragem nem de pensar, a mãe, tentava não se dar por vencida, e colhia o que conseguia para fazer sopa, era bom nem perguntar do que era, uma vez, o pai e a mãe tiveram uma grande discussão pois o pai achava que a mãe estava envenenando as crianças para acabar com o sofrimento delas, mas, Nicodemus como mais velho, não podia esmorecer frente as dificuldades.

O pai chamou Nicodemus para dentro, estavam todos na mesa, comendo o pouco de sopa que havia sobrado, a pequena, estava deitada no chão, parecia até fraca para andar, o pai tomou uma decisão.

_Vamos levar as crianças para dar na cidade mais próxima.

Nicodemus não aceitava aquilo...

_Ochente, pai, tá trongola tá? Isso não pode acontecer, somos uma família não somos? Como pode querer dar os pequenos? Meu padinho padi císso não pode permitir um negocio desse”

_ Mãe se ta ouvindo o pai, mãe. Tá ouvindo, depois o pai diz que é a senhora que tá doida.

É melhor estarem mortas que na mão de um desconhecido.

A mãe falou com sua voz grave:

_ Mas nós não consegue ,mais enterrar fio Nicodemus.

Apontando para o quintal ela mostra :

_Tá vendo lá na curva da estrada, são 8 cruzes, que eu mesma cortei com minhas mãos, 8 filhos que eu não dei, e morreram, ninguém vai dar casa para uma mulher de meia idade com 5 crianças, ainda mais com esta pequena, que parece uma lumbriga.

Nicodemus discutiu, chorou, pediu, esbravejou, mas os pais estavam decididos, no próximo sábado, colocariam as crianças na carroça e iriam para a cidade mais próxima dar aquelas crianças aos primeiros que quisessem, e de lá seguiriam para outro lugar em busca de pelo menos um pingo de dignidade.

Nicodemus, daquela noite em diante, não dormiu mais.

Rolava para um lado e para o outro, tentando buscar uma solução, o quintal já não tinha mais onde furar em busca de água ou de uma raiz que provasse que ali um dia poderia nascer algo, as vacas já eram uma mistura de pele , pelo e osso, nem davam leite, nem mogiam, também estavam na esperança de quem iria morrer primeiro.

Na noite que antecedia o dia marcado para levarem as crianças, Nicodemus tomou uma decisão.

Mal o dia amanheceu, 1 homem com 4 crianças, cruzava o portão da casa onde nascera, e onde tinha visto a natureza ser são injusta,a vaca Pérola de longe, mugiu parecendo entender a gravidade da situação.

Lá ia Nicodemus, com a pequena no colo, e as outras crianças seguindo-os como se estivessem indo a um passeio rotineiro... Em poucas horas seus pais acordariam, e viriam o bilhete mal escrito, deixado na mesa, onde Nicodemus se despedia e pedia a benção dos pais na nova empreitada. Sabia que seu pai não resistiria em outro lugar, há 50 anos vivendo naquela terra, não saberia viver em canto algum. Sem as crianças, seria mais fácil sobreviverem.

Nicodemus andava na longa estrada de terra, para chegar a pista principal, quando um caminhão velho veio se aproximando, prontamente fez sinal para pegar uma carona com as crianças.O caminhão parou um pouco á frente, levantando tanta poeira que parecia que havia desaparecido na nuvem marrom que sufocava e insistia em cegar, mas nada que impedisse de ler em seu para-choque o nome jabiraca velha.

Um senhor alto e magro, desceu do caminhão.

_Para onde vai menino, com esta “renca de crianças?”

Nicodemus pensou em dar uma resposta bonita, como estamos passeando... ou vamos visitar um parente, mas nem ele mesmo, o único adulto do bando, sabia dizer para onde estava indo.

_ Não sei para onde vamos, só sei que vamos!

_Estas crianças são suas? Perguntou o senhor-

_ São.Quer dizer, são meus irmãos.

_ E cadê seus pais?

_ Ficaram em casa, a mãe ta duente.

_ e porque as crianças não estão na escola?

_ Moço, nós estamos procurando exatamente um lugar onde essas crianças possam estudar, pois onde moramos faz mas de ano que não cai uma gota do céu, não dá mais pra viver

_ Entra aí gente, essa é minha jabiraca velha, mas me leva onde quero, vamos ver no que posso ajudar a vocês.

Nicodemus, entrou correndo no caminhão acomodando as crianças, quando andaram cerca de 10 kms, o pneu do caminhão estourou, Nicodemus desceu para ajudar o forasteiro.

Quando estava ajudando falou ao mesmo:

_ Meu nome é Nicodemus e o do senhor?

_ O senhor respondeu:

_ Meus filhos me chamam pelo nome de Senhor.

Nicodemus riu...

_ Nome engraçado não? Bem que o senhor podia ser mesmo o Senhor , sabe aquele? O tal todo poderoso...

_ mas eu sou...

_ Ah é? ... zombou Nicodemus.

_Sou, porque não pareço?disse o senhor

Nicodemus entrando na brincadeira começou a brincar com o senhor.

_ Parece, parece muito, só que o senhor, é menos inteligente que aquele “ Senhor”

_ Porque Nicodemus?

_ Porque , o que Deus, o Senhor todo poderoso, estaria fazendo nessas bandas quentes e abandonadas ? Esperando uma bicada de carcará? Riu Nicodemus.

_ Ué Nicodemus, onde é que eu deveria estar?

_ Ah senhor, se eu estivesse no seu lugar estaria em um lugar fresco, com neve, em uma casa bem bonita e quentinha.

_ Ahhh sim, e o que eu estaria fazendo por lá? Marshmallows? Perguntou Deus, vendo o sufoco que meus filhos passam nos lugares mais pobres?

Nicodemus viu que o homem falava sério, mas pensou...

“ este está trongola igual o pai”

_ Ah sim, e porque o senhor, todo poderoso, Deus, Jeová, ou o que o senhor deixar chamar, deixa as coisas chegarem ao ponto em que chegam?

_ Ah Nicodemus, o que acontece é o contrário, porque o homem, deixa as coisas chegarem onde chegam? Para que eu dou o livre arbítrio, se muitos tem medo de usá-lo?

Nicodemus ouviu atentamente o senhor que se dizia ser deus e refletia sobre suas palavras, em uma coisa aquele velho maluco tinha razão,porque o ser humano deixava as coisas chegarem ao limite para tomarem uma decisão?

Porque o pai ao invés de sair quando morreu o primeiro menino, deixou morrer 8 para achar que era a hora de dar os pequenos e sair da cidade?

Enquanto Nicodemus pensava, chegou ao lado da jabiraca velha,um super caminhão possante, lindo, preto com um fogo do lado, as crianças pareciam estar vendo uma espaçonave, todas sentadas quietinhas na boléia da Jabiraca.

Desceu do caminhão um senhor bem apanhado, com um terno de belo corte, um cachimbo, e este disse ao Nicodemus.

_ Que monte de crianças feias são essas?

Nicodemus ficou logo brabo, queria matar ele era falar da família dele, mesmo sabendo que as crianças não estavam bem cuidadas para ele eram as crianças mais lindas da terra.

_ Ei seu perverso, olhe lá como fala dos meus irmãos.

_ Ah são seus irmãos, exclamou o tal perverso, mas são feios de doer hein? Essa pequena, esmirrada então, parece até um calango , só tem olho.

Nicodemus foi se aproximando do homem com o punho cerrado para lhe dar um soco, quando este gritou:

_ Calma rapaz, estou brincando, ... Te dou meu caminhão nessas crianças.

Nicodemus parou com a proposta.

_É o que é?

_ Te dou meu caminhão nas 4 crianças.. É novinho ta com o motor amaciando.

O outro homem olhava sem interferir na negociação.

_ Quero as 4, levo para estudar e para trabalhar um pouquinho, mas dou comida e bons tratos.

_ Nicodemus , olhava o caminhão encostado no acostamento, e se imaginava naquele possante, pensou em como poderia buscar os pais, e viver bem , e é claro que as crianças ficariam felizes também, pois o homem tinha cara de quem tinha posses.

Nicodemus, coçava a cabeça sem achar uma solução, olhava o senhor... Não sabia o que fazer.

O Senhor, chegou perto de Nicodemus e disse:

Meu filho, pense bem, nada tenho haver com a sua vida pessoal, mas tirou estas crianças de casa para não serem dadas, e acha que deve entregá-las a um estranho?Por um Caminhão que nem sabe de onde saiu?

O homem do caminhão riu...

_ Ahhh, eu não acredito que irá dar atenção a este velhote.Você o conhece?

Nicodemus olhava para um e para o outro e não sabia o que decidir.

O Senhor olhava para as crianças desconsolado, não sabia o que fazer para ajudá-las.

Nicodemus olhava o grande caminhão e vizualizava a vida que nunca teve.

O senhor, olhava para Nicodemus esperando uma resposta.

Nicodemus, saiu de perto da jabiraca velha e foi olhar o caminhão por dentro.

O Senhor, vendo o interesse de Nicodemus pelo caminhão último modelo, entrou na boléia da jabiraca, ligou o motor e saiu arrancando.

Nicodemus ficou desesperado, ligou o caminhão, e saiu correndo atrás do senhor.

Na estrada era poeira para tudo que é lado.

O dono do caminhão estava ao lado de Nicodemus, falava para ele pisar fundo no acelerador, e rapidamente os dois alcançaram a jabiraca velha.

O velho na jabiraca velha , não parava.

O homem ao lado de Nicodemus, pedia para ele dar pequenas batidinhas no caminhão para o caminhão sair da estrada e obrigar ao tal senhor a parar, nisso, o homem ia fazendo a cabeça de Nicodemus.

Este velho é um seqüestrador foragido, vai ficar com tuas crianças sem te dar nem um centavo.

Nicodemus estava cheio de raiva no coração, e começou a chorar com o pensamento do velho fazer algum mal as suas crianças.

Em uma curva acentuada, bem próxima a um precipício, o homem falou para Nicodemus.

_ Este velho é maluco, não para de correr com estas crianças dentro do carro, vamos fazer um trato, tu joga o caminhão dele lá de baixo do desfiladeiro, e pode ficar com meu caminhão para você.

Nicodemus não tirava o olho do caminhão.

_ Pense bem Nicodemus, as crianças você já não iria ver mais mesmo, pois ou seus pais iriam dar, ou acabariam morrendo como os outros, não é verdade? Pega este caminhão e pára este velho,. É melhor estarem mortas que na mão de um desconhecido, não foi isso que disse ao seu pai?

Foi nesse instante que Nicodemus percebeu que aquele homem, não podia ser coisa desse mundo, como sabia da conversa que teve com seu pai?

Em um ato muito rápido, o homem pegou o volante e jogou o caminhão para cima da jabiraca velha. Para não ferir as crianças, Nicodemus, girou o volante para o outro lado, e só viu quando o caminhão em que estava desceu ribanceira abaixo. Seu grito foi desesperador:

_ Deusssss!

O susto foi maior que a queda.

Nicodemus viu pelo retrovisor quando uma parte do caminhão em que estava começara a pegar fogo, o desespero foi grande, precisava explicar as crianças que nunca teria abandonado-as, que estava apenas admirando o caminhão.

Foi quando viu sair do mato, o tal Senhor, pegá-lo no colo, e levá-lo para longe do veículo em chamas.

Nicodemus apagou.

As horas passaram, e Nicodemus acordou em um hospital, os policiais que o trouxeram, disseram que não souberam explicar como, 4 crianças, pequenas e frágeis, conseguiram descer uma ribanceira, para socorrer o irmão de um caminhão em chamas.

Nicodemus delirava e dizia que tinha sido Deus que o havia salvo, e que o outro homem, estava junto com ele no caminhão, mas nada foi encontrado, nem o homem, nem o tal senhor, muito menos a tal “jabiraca velha” .

A história virou notícia, mas a surpresa maior veio depois. O caminhão, que pegara fogo, havia sido enviado da cidade de São Paulo para buscar a família de um tal João, que havia saído dali com a promessa de buscar a família depois, e fora roubado no meio do caminho por sorte o caminhão estava segurado, o que Nicodemus não sabia , era que o tal João, era seu tio que havia saído de Santo Antônio da Boca do Mato, há dez anos com a promessa de um dia voltar.

E todos naquelas bandas até hoje contam a história de uma família que por pouco não acabava, bem pertinho de receber uma ajuda divina para continuar unida, e assim, ano, após ano, dia após dia, esta história alimenta as esperanças de pessoas comuns, amarguradas pela seca, que vivem a espera do dia que em uma estrada qualquer, lá para as bandas do sertão , um tal Senhor, também conhecido como Deus, possa surgir do nada, e fazer brotar fontes de água viva, de amor e de boas novas, nas vidas secas de almas que esperam sempre um novo dia, na esperança de dias melhores!

Izabelle Valladares

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Izabelle Valladares Mattos
Enviado por Izabelle Valladares Mattos em 22/08/2012
Código do texto: T3842755
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