A PICADA DA COBRA E A GALINHA À CABIDELA.

A PICADA DA COBRA E A GALINHA À CABIDELA.

O azevem, a aveia, o cornichão e o trevo, davam um contraste maravilhoso, era um festival de verdes, mais escuros, mais claros, uns salpicados. Era uma vista gostosa de ver, ou quem sabe uma paisagem gostosa de ver. Quando o vento batia, ondulava tudo.

Já estava na altura do cano da bota. As chuvas foram generosas. Até se lembrava era dia 21 de abril quando terminou de semear a pastagem de inverno. Havia colhido soja e milho, tinha ainda um "poquetin" de adubo da safra e o resto viria com o esterco do gado e dos carneiros. Pisavam aqui, estercavam acolá e assim a natureza se encarregaria de resolver, como vinha resolvendo há muitos anos.

Sempre gostava de sair pela manhã, ainda com o orvalho, como que um chuvinha fina que caíra durante a noite. Até parecia que o gado e as ovelhas comiam com mais satisfação, dava a impressão que era mais macio.

Encilhara um cavalo mestiço de P.S.I. com Quarto de Milha. Muito bonito, inteligente e ligeiro. Saiu bem cedinho, gostava o ar frio e puro. Vez por outra o cavalo, tobiano baio, baixava a cabeça para apanhar um bocado de pasto fresco e novo.

Estava distraído quando cavalo deu uma empacada e murchou as orelhas. Refugar não era costume deste cavalo. Sentiu algo de errado, com que um aviso. Um arrepio percorreu o espinhaço e até deu um tipo de tremelique. Nem um passo à frente. Simplesmente estancou. Não usava rebenque e nem admitia tal. Cavalo era sagrado, não se batia, assim como sagrado era toda a gadaria, não se usava guiada e nem tão pouco cachorros.

Apeou e um tanto desconfiado foi andando, puxando o tobiano pelo cabo do cabresto. Olha daqui, olha dali e o cavalo empaca novamente, como que querendo avisar: existe algo diferente ai por perto. Se o cavalo não queria andar, não forçaria. Amarrou em um pé de cagaita, tirou da cela a velha espingarda de repetição. Não gostava de palavras estrangeiras, do tipo Winchester, pois era gago e quando ia pronunciar Winchester ficava,win, win, win e mais brabo ficava quando completavam a palavra. De espingarda na mão, engatilhada foi meio que tateando o terreno.

O que viu deixou-lhe de cabelos em pé. Arrepiou-se todo. Sentia um tipo de calafrio a percorrer-lhe o corpo todo. Chegou a suar frio.

Um corpo estendido no chão e uma criança sentada ao lado.

Correu ao encontro daquele corpo, era uma jovem mulher. A criança, rechonchuda, cabelos encaracolados não se assustou com a chegada daquele homem. A jovem ainda respirava, falava palavras sem sentido, suava as bicas.

Voltou correndo para onde deixara o cavalo e pegou o cantil. Levantou a cabeça e aos poucos foi dando-lhe água. Tinha não mais do que 22 anos se muito. Conseguiu escutar e entender o apelo "salve meu filho".

Aos poucos acalmou a jovem mãe, que conseguira balbuciar que fora picada por uma cobra. Apontou o tornozelo onde dois pequenos orifícios indicavam o local do acidente. Que tipo de cobra? Onde se encontraria a tal? Sem mais pensar, colocou a moça nos ombros e a criança no colo e a passos largos conseguiu chegar onde o cavalo se encontrava. Mulher, criança e cavaleiro um só destino, a casa da fazenda. Parecia que o tempo não passava. Como que entendo a gravidade da situação a montaria não refugou o peso e dava tudo que tinha para chegar ao destino.

Os empregados ao avistarem o patrão com mais uma pessoa, correram ao seu encontro e mais espantados ficaram ao se depararem com uma criança. A mulher a estas alturas estava praticamente desmaiada. Picada de cobra. Urutu? Cascavel? E se fosse Coral verdadeira? Corre buscar Nhá Dunduca pra mode de benzê a moça. Deitada suando e gemendo de dor, o tornozelo inchado e ficando azulado. O suor a escorrer pela testa e pelo rosto. Dá licença dona moça que eu vou benzê esta mordida:

Com Deus eu deito,

Com Deus eu me levanto,

Com a graça de Deus e do Espírito Santo.

Jesus filhos da Virgem Maria me acompanha esta noite e todo dia.

Vós me olha e me guia

Meu anjo da guarda me ampara e me guia.

Qual é a maior luz? Jesus.

Qual é a maior guia? Maria.

Qual é o maior patrão? José.

Assim como esta verdade é, valei-me meu Jesus, Maria José.

Pediu que se buscasse na mata um tanto de cipó ambé. Foi coletando a água do cipó e com auxílio de uma colher, foi dando pelo canto da boca da moça. Tomou quase que um litro de água do cipó ambé.

Ferveu um pouco de água e ralou um tanto de cipó ambé. Esfriou um pouco e foi lavando a ferida. Mais uma fervida e mais cipó ambé ralado. Aos poucos o inchaço foi diminuindo. O suor não mais escorria. Conseguia agora falar claramente.

A dor ainda era grande. Mas picada de cobra overa é assim mesmo. Daqui um pouquinho desaparece. E de fato o inchaço desapareceu, a dor também. E o meu filho? No colo do patrão estava ele, agora de roupa limpa. Tinha tomado banho, penteado os cabelos encaracolados. A noite foi de vigília. Água de cipó ambé, cataplasma de cipó ambé ralado. Amanhecera o dia e todos estavam curiosos. A moça não urinou vermelho? Não reparei. Devia arrepará. Escuita aqui. Toma só água de cipó. Já mandei os peão buscar nos mato este cipó. Quando sentir vontade de urinar, me chama. Vergonha tinha, porque Nhá Dunduca, era despachada. Não tinha meias palavras. Lá pelas tantas deu vontade urinar. Pois já bebera uns 4 litros de chá de cipó. Não urinara vermelho. Clarinha era a urina. Moça a senhora tá salva.

Mas a moça d'onde é que é? Sou lá das bandas do Marco Perdido. Mataram meu marido e todo mundo da fazenda. Briga de posseiros. Fugi eu mais o meu filho, quando estava correndo sem direção uma cobra me picou. É muito sofrer. Morre o marido e quase morre a moça de picada de cobra. O senhor me dá pouso?

Como negar ante tanta desgraça? Morre o marido, é picada de cobra, fica sem onde morar. Olha dona mulher, a senhora pode ficar aqui na fazenda o tanto que necessitar. Amanhã eu vou mandar a peonada dar uma olhada lá nas suas terras, ou seja lá as terras que eram suas. Num aprecisa não seu moço. Eu e mais meu marido nós num mais vivia junto. Ele tinha uma rapariga e vivia mais ela, lá na vila. A encrenca das terras, na verdade é que o marido da dita cuja, não agüentava mais de dor de corno e aproveitou do momento, para tomar as nossas terras. Tomou as terras, matou o pai da criança e agora, não sei mais o que vai ser da minha vida.

O tempo passou, cicatrizou feridas, picada de cobra, orgulho ferido, apagou lembranças ruins. A criança que antes tinha os cabelos encaracolados, agora eram cacheados e louros. A alegria da casa, a alegria de todos. Passou a morar em uma pequena casa, ajudava nas lidas diárias, lavava roupa, limpava a casa, cozinhava de quando em vez.

Não havia quem resistisse quando fazia uma galinha de capote à cabidela. Ninguém resistia, era simplesmente tentador. A suavidade do molho com a maciez da carne. Um colorido contrastante mágico aliado ao sabor.

Mas como diz o ditado, o homem se fisga pela boca.

E assim foi o que aconteceu, da sua boca as palavras desesperadas "salve meu filho" às palavras que nunca antes imaginara pronunciar, quando vigário lhe perguntou: Maria Clara, aceita como seu legítimo esposo, João Antonio? Meio pasma e sem acreditar no que ouvia respondeu: Aceito.

Foi o dia mais feliz da sua vida, graças ao cipó ambé, a galinha à cabidela e ...digamos a picada da cobra. Qual era a cobra mesmo?

Romão Miranda Vidal.

ROMÃO MIRANDA VIDAL
Enviado por ROMÃO MIRANDA VIDAL em 25/02/2007
Código do texto: T392938