Em briga de marido e mulher...

Eu gosto de estar bem com todo mundo. Mesmo com o pior dos delinqüentes, eu gostaria de fazer as pazes e confortá-lo. Mesmo com um desses políticos corruptos que só pensa em nos ludibriar. Mesmo com o dono da empresa mais poluidora do mundo, eu gostaria de tentar convencê-lo a ser bonzinho e parar de agredir o meio-ambiente. Mesmo com esses grupos radicais que levam a vida na ponta de baionetas e apertam botões explosivos sem pensar duas vezes, eu gostaria de tentar demonstrar para eles que o paraíso e o inferno é aqui mesmo, só pode ser aqui.

É, eu me considero o cara mais cordato do mundo, aquele que, pelo menos teoricamente, daria a outra face para levar mais pancada. O diabo é que dar a outra face não garante apenas mais um tapa. Não, são muitos mais tapas, pontapés, cutiladas, mordidas e golpes de caratê. E é por isso que não dou a outra face.

Aliás, nunca vi quem desse a outra face, exceto uma vez, dentro do antigo bar Jangadeiros, há muitos e muitos anos, numa briga entre um homem e uma mulher. Briga? Não, ali foi uma verdadeira pancadaria, aquilo não foi uma simples briguinha de amor, foi pau puro. E, adivinhem, quem deu a outra face, para variar: foi a mulher.

Eu sei que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Nem a colher e nem a faca. Mas, aquela noite, de repente, escutou-se uma sonora bofetada no ar, uma bofetada estalada. O homem, de seus quarenta anos, sentou a mão aberta na cara da mulher, estragando o chope de todo o mundo. Ela caiu no chão, e, inacreditavelmente, ele chutou suas costelas! Caramba, após a surpresa inicial, dois ou três cavalheiros, inclusive eu, se levantaram para defendê-la.

Parecia que ia haver um linchamento, se não fosse pela intervenção do garçom, o Cabeça, um senhor de meia idade, gordo e calvo, um verdadeiro gentleman. Ele se correu para dizer:

- Não se metam não. Isso acontece todo dia. Daqui a pouco vão estar de beijinhos!

E foi o que ocorreu. Em dois minutos estavam sentadinhos, tomando chope, como se nada tivesse acontecido, a mulher com o rosto vermelho, fingindo gostar daquele troglodita. E para todos no bar, aquela cena surreal poderia parecer um laboratório de atores de teatro de vanguarda, e talvez fosse, já que os artistas iam ao Jangadeiros.

E eu, tão cordato, querendo ficar bem com todo o mundo, tive que me adequar. Às vezes você tem que ser duro mesmo, com ternura ou sem ternura, para poder sobreviver num mundo que cada vez mais parece ser um laboratório, o caldeirão fervente onde todas as ilusões se desfazem. E não pude deixar de escutar o comentário rodrigueano da mesa ao lado:

- É, mulher gosta mesmo de apanhar!

Mas será que gosta? Acho que não. Aquela mulher tão meiga deveria estar maquinando uma vingança qualquer. Conheci uma que esperou o marido dormir para despejar água fervente em sua orelha. Usou um funil, esperando que o líquido ardente atingisse o cérebro e o matasse. Mas, sem sucesso, conseguiu mesmo foi uma orelha queimada e um olho roxo.

E o casalzinho do Jangadeiros era mesmo habitual. Repetiam a cena umas três vezes por semana. O que mais impressionava é que a mulher nem ao menos se defendia. Dava uma face e depois a outra, submissa às pancadas do amor violento. Todos os Dom Quixotes do bar ficavam pegando em lanças... E naquele tempo nem havia delegacia da mulher para reclamar.

Mas, uma noite aconteceu. A mulher se defendeu. Estavam numa mesa perto da parede, o homem, levantou abruptamente, a cadeira projetou-se para trás, e armou um soco. A mulher, com uma agilidade de “boxeur” fez uma finta maravilhosa, e ele esmurrou a parede... Bem feito. Tiveram que levá-lo para o pronto socorro, urrando de dor.

No dia seguinte estavam lá, tomando chope, ele com gesso até o cotovelo e ela com um sorriso lindo.