APENAS UMA CERCA BAIXA

A pequena e pacata Mambiquara era quase que uma aldeia, mas já tinha recebido o título de cidade. Nela tudo funcionava como deveria, e quase nunca acontecia alguma novidade que mudasse a rotina dos viventes.

Tudo era tão normal e tão tranqüilo que a cidade, quase uma aldeota, era paraíso dos estafados habitantes da capital, que a procuravam para descanso de férias, finais de semana, e até mesmo moradia por temporadas.

Localizada na região serrana do Estado, lá vivia uma gente pacífica, ordeira, religiosa; cujos hábitos eram bastante previsíveis e não passavam de rotinas burocráticas, familiares e litúrgicas que ajudavam a manter o status quo.

Até que um bem afeiçoado rapaz - filho de tradicional família do lugar - resolveu contribuir para esquentar um pouco os ânimos, aguçar a curiosidade alheia e incrementar a crônica policial e a bisbilhotice das carolas do lugar.

Deixe estar que o acontecido se deu lá pelos idos dos anos 1910, antes do fervilhar da I Grande Guerra Mundial, quando o mundo ainda não era essa avalanche de informação que se vê hoje.

A pacata Mambiquara era ainda muito pequena em vista do que é hoje. A atual Rua Ataulfo Fagundes ainda tinha por nome Avenida Independência, uma homenagem tardia à Proclamação de Dom Pedro I, nome recebido em 1901.

Antes, porém, já havia sido batizada de Rua do Riacho Doce, que vinha dos tempos dos colonos ingleses, que quando ali chegaram, em 1847, a denominaram com esta graça poética.

A rua em questão tem lugar importante em nosso relato, pois foi nela que se deu o evento que mergulhou a pequena Mambiquara numa azáfama nunca dantes percebida.

Nos idos de 1910, a nossa Rua Ataulfo Fagundes apresentava em suas cercanias, mormente no trecho que margeava em sua parte sul com o famoso Rio Cantárius que cortava a cidade, antigas construções, de inspiração da época vitoriana, que os que viveram aquele tempo, delas guardam saudosa memória.

Neste entorno, que ladeava pela esquerda com a bela Praça da Saudade, havia à época o palacete da família Bertrand; além de ricos prédios que ornavam o centro da cidade e encantavam os viajantes que por lá passavam. Machado de Assis, Ruy Barbosa, Campos Sales compõem a seleta de nomes que gostava de se hospedar naquelas mansões, sendo bem recebidos por famílias de renome da cidade que se esmeravam na arte da hospitalidade.

Hoje, as gerações mais jovens só tomam conhecimento dessa época áurea, consultando a história, e mesmo assim no pouco que se preservou de fotografias e relatos, pois as tradicionais famílias do lugar trataram logo de por abaixo os casarões e prédios, antes que a sanha preservacionista dos políticos, em sua lerdeza habitual, pudesse tombar como patrimônio histórico.

Pois foi naquele ambiente, e no seio de uma daquelas tradicionais famílias, que vai ocorrer o que passo a relatar. A cidade estava lotada naquele verão. Os verões de Mambiquara eram muito bem freqüentados e aquele não estava sendo diferente. Além da tranqüilidade da cidade e da apregoada cordialidade de seu povo, Mambiquara possuía um clima aprazível que atraia os moradores da capital, foragidos da temperatura elevada dos verões litorâneos e dos mosquitos ensandecidos, conhecidos como borrachudos.

As famílias que compunham a cidade eram descendentes de levas de imigrantes italianos, ingleses, irlandeses e alemães que invadiram o local tão logo o Brasil se abriu às nações amigas por decreto de D. João VI. A harmonia dos moradores prevalecia, onde os bons costumes, a moral, a religiosidade latente, herança de uma Europa que já começava a dar sinais de um materialismo e hedonismo crescente, mas que ainda preservava certas tradições que estes imigrantes transplantaram no Brasil.

Pois no seio de uma das mais tradicionais famílias de Manbiquara vai se dar um fato que alvoroçou o início de Século XX naquelas cercanias. Afonso, jovem esbelto, recém-casado, com um futuro promissor como industrial da área têxtil, não soube controlar a libido que em polvorosa estava naqueles anos ardentes de sua juventude.

Deixe estar que em Mambiquara os obstáculos eram muito pequenos para ser transpostos. Inclusive as cercas, de baixa altura, seguindo o padrão das casas ajardinadas da Europa que permitiam uma antevisão dos interiores das residências, naqueles tempos sem sobressaltos de bandidos, diferentemente do que se vive hoje.

Pois as cercas eram tão baixas e tão acessíveis que Afonso resolveu de pular uma cerquinha miúda, de seus dezessete anos, no frescor da mocidade, e que chamava pelo nome de Kamilla. A cerca baixa, que facilitou a puladinha de Afonso, era morena, muito simpática, de sorriso envolvente em rosto largo, testa grande, e longos cabelos negros que lhe caíam como véu. Queixinho fino, nariz afilado, sobrancelhas bem cuidadas e lábios sensuais, Kamilla enfeitiçou o pobre rapaz que se esqueceu da esposa novinha, fresquinha, jeitosinha, e danou de destrambelhar-se para os lados da ninfeta que lhe seduzia.

O problema é que esta beliscadinha fora de casa, puladinha de cerca inocente, secreta, que se dava periodicamente com a pequena morena que trabalhava numa das mansões da rua e estava sempre disponível nas tardes que os patrões se ausentavam para a empresa da família que distava quilômetros do local; como sói acontecer em casos desta monta, veio a lume por conta de uma indesejada gravidez que foi escondida o quanto se pode, pois a reputação do jovem empresário, o seu casamento e o nome ancestral da família, não poderiam ser jogados na lama.

A situação começou a ficar embaraçada para os dois pombinhos. Ela sem muito a perder, exceto a reputação de moça virgem, casadoira, que naqueles tempos antanhos ainda contava muito. Ele, porém, com o nome da família em jogo, o casamento, se viu em maus lençóis e tratou logo de articular com a amante um ardil para superar tal desdita.

Foi quando trataram de secretamente resolver o caso. Feito o aborto, nada melhor do que as águas do Rio Cantárius para levar para bem longe o feto desafeto. Para azar dos dois, na manhã seguinte ao desenlace, um curioso passante das gramíneas que cercavam o rio, teve sua atenção chamada para um estranho embrulho que se fixou num galho, frágil galho que não deveria existir, mas que ali estava para açoitar o lombo moral dos amantes.

Quando o passante fortuito pescou o embrulho e o abriu, o feto que se desprendeu do saco de lona provocou tal alarido que uma pequena multidão avizinhou-se do local, causando um congestionamento humano, tal qual ainda não tinha sido visto em Mambiquara. Para complementar o drama do jovem industrial - que a esta altura já tomara conhecimento do achado -, a Delegacia de Polícia da cidade localizava-se naquelas imediações e, apercebido do acontecido, o delegado e um séqüito de policiais dirigiu-se ao local, tomando providências para abertura de inquérito.

Afonso suava frio em noites inquietas. O rapaz estava embuçado. A jovem esposa o consolava diuturnamente, passando-lhe panos molhados no rosto para abrandar o que pensava ser uma febre de verão causada por algum dos pequenos animais peçonhentos da estação. O delegado, Dr. Percival, que tomara conhecimento do fato da janela do prédio público, e para lá se dirigira diligentemente, agora estava debruçado sobre o caso, tentando desvendar crime tão abjeto.

O jovem esposo não melhorava. Enquanto uma solução não aparecesse, ele não teria condições de melhorar de sua “febre”. Para complicar a história, toda a população da pequena Mambiquara estava à caça de encontrar uma moça que passara por um processo de emagrecimento repentino. E tal certame não era de difícil desfecho em lugar tão pequeno e previsível.

Foi quando a coisa começou a esquentar. E esquentar mais do que o permitido pelas famílias centenárias do lugar, que numa bela tarde de abril, três preclaros da localidade adentraram o velho recinto da Delegacia de Polícia, com seus sapatos pesados, fazendo cantar o assoalho de madeira do local. Precisavam urgentemente conversar com o delegado sobre o que estava acontecendo na cidade. O bom nome da aprazível e acolhedora Mambiquara não podia ficar à mercê de uma situação tão intrincada e de difícil solução.

- Mas falta pouco para desvendar o crime.

- E vale a pena? Retrucou o mais velho dos nobres cidadãos.

- O prejuízo para o comércio, o turismo e as famílias tradicionais da cidade pode ser maior do que qualquer outro benefício...

Toda uma argumentação bem disposta havia sido articulada para tentar convencer o delegado a arquivar o inquérito ou arrumar um outro jeitinho brasileiro do interior para a situação. Quando percebeu a pressão que os inomináveis cidadãos estavam dispostos a fazer sobre ele, o escolado delegado coçou a cabeça envelhecida, cofiou a barba branca e franzindo o cenho disse:

- Preciso tomar um cafezinho, caso contrário meu estômago não resistirá a mais um dia sem almoço. Sabe aquele volume em papel pardo ali sobre o balcão? É este o inquérito a respeito do qual me procuram. Os senhores podem ficar à vontade!

Foi assim que na pequena e pacata Mambiquara tudo voltou a calmaria absoluta; Afonso teve sua saúde restabelecida; e um inquérito entrou para as páginas misteriosas do desaparecimento sem que sequer houvesse alguma conclusão. E numa certa mansão, até que ela fosse posta ao chão, um certo jovem continuou a visitar sua cerquinha miúda, que pulava fácil, agora precavido com uma recente descoberta chegada dos bordéis de Paris: a camisinha de Vênus.

ALEX GUIMA
Enviado por ALEX GUIMA em 16/03/2007
Reeditado em 13/01/2024
Código do texto: T415074
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