Opa! Foi engano...
 
Como faço muitas vezes, contarei o milagre, mas não o santo. Nada mais revelarei além de que esta história foi protagonizada por um colega de trabalho que tive numa grande empresa, décadas atrás. Também me abstenho de discorrer ou sequer chamar a atenção sobre a miséria moral que desde o início dos tempos assola a humanidade. Minha intenção é unicamente destacar o lado hilário do acontecimento, que felizmente não acarretou prejuízo maior às partes envolvidas. Ao contrário, acredito que o trauma pelo fracasso da empreitada tenha contribuído para fortalecer o convívio matrimonial do protagonista.
 
O gênero travesti ainda não era muito conhecido na cidade. Nas esquinas do pecado, prevaleciam as prostitutas, rodando suas bolsinhas e atentas aos eventuais movimentos da polícia. Vez ou outra, aparecia uma viatura e levava as mais vagarosas ou distraídas, para se explicarem na delegacia. Na noite seguinte, voltavam ao ponto.
 
Aos poucos, a turma do terceiro sexo começava a fazer trottoir na Alameda Doutor Carlos de Carvalho esquina com a Rua Brigadeiro Franco. Quem não estava habituado com as diferenças ou não reparava direito, achava que eram prostitutas como as da Rua Riachuelo ou Avenida Visconde de Guarapuava, mas de uma categoria superior, dada a indumentária das criaturas. Uns mulherões de provocar a libido de muito macho desavisado ou desatualizado com o mercado do sexo. O que dizer, então, dos chegados à fruta?
 
O colega era sujeito pacato. Nunca foi dado a farras, prostíbulos, puladas de cerca ou coisas assim. Contudo, a monotonia dos quase dez anos de casamento o incomodava um pouco, sobretudo quando ouvia casos e causos dos outros, que faziam e aconteciam. Muitos da firma davam seus tirinhos em outros matos, contando vantagens depois, e ele não saia do cercado. Fiel e temente à cara-metade, dia e noite, na saúde e na doença.
 
Numa temporada de férias de verão, a família despachou-se para a praia. Uma semana livre e desimpedido, como há muito não experimentava. Já havia esquecido o que era liberdade, por isso, nos primeiros dias sentiu-se como o cachorro correndo atrás da roda do carro. Quando o carro para, o cão não sabe o que fazer com ela.
 
A semana ia passando e ele não decidia o que fazer, para aproveitar os momentos caídos do céu. Na noite de quinta-feira, resolveu pegar seu carro novinho, top de linha, e dar um passeio pela cidade. Quis o destino que ele fosse levado a trafegar justamente na esquina dos travestis.
 
Não resistiu à empolgação ao ver o desfile das supostas beldades irresistivelmente produzidas. Desatualizado e com o capeta soprando-lhe besteira no ouvido, contornou o quarteirão umas três ou quatro vezes. A cada volta aumentava a vontade, e a coragem, que no início era incipiente, ganhava força. Acabou decidindo-se por uma. Convidou-a para entrar. Prontamente ela acedeu ao convite. Ele tocou o carro.
 
- Benzinho, eu só vou para o meu quarto aqui perto ou motel conhecido, outro lugar não aceito, você escolhe - disse o traveco.
 
- Então vamos para o seu quarto, diga o caminho.
 
No trajeto, o colega desconfiou que alguma coisa não estava funcionando conforme a bula. A moça tinha uma voz esquisita, mole demais, levemente grave. Apesar de toda animação inicial, à medida que a conversa se desenrolava, ele ia ficando mais cabreiro. Ao parar no semáforo de um cruzamento bem iluminado, deu uma olhada no perfil da peça, meio a contraluz, e sem querer colocou os olhos diretamente sobre um pomo de Adão proeminente, incompatível com as características do belo corpo feminino. Gelou.
 
Incrédulo e temeroso, tinha de achar um jeito de sair da enrascada. Não podia simplesmente pedir à convidada que se retirasse, muito menos expulsá-la. Certamente ela faria um escândalo ou avançaria sobre ele. Decidiu então devolvê-la ao ponto de partida.
 
- O que foi? O caminho não é este. Combinamos ir para o meu quarto. Não venha com gracinha ou rodo a baiana.
 
Ele ficou ainda mais preocupado com a interpelação e a repentina subida de tom. E a voz ligeiramente mais grossa que antes.
 
- Desculpe, não estou me sentindo bem. Preciso ir para casa urgentemente. Vou levá-la de volta. Não se preocupe.
 
- Não esqueça que você tomou meu tempo. Posso ter perdido um programa. Isso tem preço.
 
Em poucos minutos estavam de volta à esquina da exposição. Ele parou o carro e perguntou ao traveco quanto lhe devia.
 
- Esqueça. Não me deve nada. Vi que você é boa gente e não está acostumado com essas coisas. Assustou-se quando percebeu o engano. Se mudar de ideia e quiser algo diferente, apareça.
 
O travesti desceu e o colega voou para casa, aliviado por ter se safado do embaraço sem danos. Não via hora de chegar o fim de semana e partir ao encontro da patroa no litoral. Afinal, concluiu que é preferível a monotonia do matrimônio duradouro às surpresas das ruas. Principalmente para quem não é do ramo.

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N. do A. - Na ilustração, La Goulue chegando ao Moulin Rouge de Henri de Toulouse-Lautrec (França, 1864-1901).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 15/03/2013
Reeditado em 26/05/2020
Código do texto: T4189988
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