RAMALHETES

Não era desse jeito que eu queria terminar esta história, mas vai terminar assim mesmo, que não me vem na cabeça final mais sensato para o que aconteceu. Pois se foi mesmo assim que eu descobri como é que Dolores fazia para estar sempre em evidência, então inventar outro final é que eu não vou. Pois assim, conto só o que se deu naqueles dias em que Dolores recebia rosas. Dia sim, dia não, chegava um buquê, que Dolores recebia meio sem jeito, com o rosto avermelhando, quase da cor do maço viçoso. Quem mandou, quem é que deu, as perguntas se repetiam e Dolores só fazia ficar mais vermelha e acabrunhada, olhando o pessoal com o rabo do olho. Nem cartão, nem nada. Nem etiqueta que indicasse floricultura ou procedência. Depois ficava olhando o maço de rosas, certificando de quando em quando a reação dos colegas de setor.

E logo vinha uma insinuação, de um canto da grande sala, dizendo ter sido aquele um, que vivia ligando para Dolores durante o expediente. Que nada, deve ter sido fulano de tal, que faz tempo tá de olho na Dolores, dizia uma outra voz, quase sibilando um segredo. E enquanto o inusitado ramalhete jazia sobre a mesa, como a enfeitar uma lápide incógnita, Dolores guardava enigmático sorriso nos lábios, desfrutando seus holofotes. Só mudava de feição ao apanhar o telefone e dizer um oi muito afetado, como quem já esperasse a ligação. E, então, tenho certeza, ela sabia que todos os ouvidos perscrutavam seu interminável colóquio, feito em surdina. Um noivo, julgavam os incautos que imaginavam Dolores prenhe de amores e seriamente comprometida. O marido, pensavam os que não a sabiam separada. Um pretendente anônimo, pensavam os que não viam nela os parcos dotes com os quais a natureza a presenteara.

Os ramalhetes continuavam chegando, dia sim, dia não. Não faltava também nem um dia sequer dessa expectativa e desse mistério lá na repartição. Até que teve um dia... Sempre tem um dia, em qualquer história, e nesta não poderia faltar o tal dia. Pois assim foi. Teve um dia, fim de expediente, em que o Sombrio, boy do departamento, e isso foi ele próprio que me contou, bateu o ponto logo depois de Dolores, que saía abraçada com seu eterno ramalhete. Té amanhã, té amanhã, e por um mero acaso, Sombrio tomou o mesmo rumo que Dolores, uns dez metros atrás. Dolores não viu e Sombrio não estava nem aí, mas de repente notou que lá adiante ia Dolores, com seu maço de rosas vermelhas. Já ia apressando o passo para alcançar a moça quando viu coisa que o deixou assombrado. Dolores olhou para um lado e depois para o outro e, rapidamente, como quem se desfaz de um estorvo, atirou o lindo maço de rosas num cesto de lixo da prefeitura.

Bastou. O moleque ficou intrigado, mesmo porque volta e meia arriscava meter os olhos de cobiça nas pernas de Dolores, sabe como é moleque, né? E também ele andava intrigado com tanta flor que ela recebia. Não que achasse Dolores lá essas coisas, mas ela tinha umas pernas... No dia seguinte, Sombrio resolveu botar o mistério a limpo e decidiu seguir Dolores na hora do almoço. Viu quando ela sentou-se sozinha no restaurante de quilo da esquina, e também viu quando ela saiu, ainda só. Ah, não! Pode deixar que eu descubro! E não pôde deixar de ver Dolores admirando lingerie na vitrine da loja no outro quarteirão, o que só fez crescer sua excitação pela aventura. Pensou coisas de Dolores e deixou-se excitar, sabe como é moleque, né? Então viu que ela entrou na floricultura e saiu dela tão rapidamente que nem deu tempo de pensar em sua próxima ação de detetive improvisado. Correu meio esbaforido e atravessou a avenida, com medo de ser visto. Deixou o resto da investigação para o dia seguinte. Mas que eu descubro, eu descubro!

Não deu outra. Logo na manhã seguinte chegaram as rosas e Dolores repetiu seu ritual de surpresa e admiração, com aquela cara de sonsa que deus-me-livre, mas que Sombrio adorava, principalmente se ela estava metida naquela saia curta... Ai, que pernas! E o povo do departamento desandou novamente a pensar e a insinuar coisas, sabe também como é que é o povo, não é? Dolores falou em surdina ao telefone, como sempre. Todo mundo com o ouvido pregado e só Sombrio não estava convencido de nada mais daquela cena corriqueira. Nem pensava mais que Dolores poderia ser...

Na hora do almoço, antes mesmo de ir para o refeitório, o moleque foi até a floricultura, não aguentando mais a excitação a consumir-lhe a alma, e o desejo de descobrir se Dolores era... Ai, aquelas pernas... Já não aguentava mais de ansiedade e quase não acreditou quando a japonesa confirmou que a moça era freguesa antiga. Comprava rosas e mandava entregar sempre no mesmo endereço. E fazia questão de que não colocassem a etiqueta da floricultura, nem cartão, nem nada.

Foi o próprio Sombrio que me contou essas coisas que ele descobriu. Por isso mesmo é que eu não mudo o final da história, pois acho até que nem acabou de acontecer direito ainda. Deixa chegar mais flores, que qualquer dia eu conto... Agora eu é que ando investigando o Sombrio, que não desprega mais os olhos das pernas grossas de Dolores.

*Do livro "O Encantador de Passarinhos" AGBOOK Editora - São Paulo - 2011.

*Prêmio Renato Passos - melhor conto do XXII Congresso Brasileiro de Médicos Escritores - Fortaleza - 2008