TRÃNSITO ERRANTE

Publicado no livro do autor, "Hacasos" - Edição 2016

O trânsito caótico das grandes cidades é capaz de proporcionar fatos inusitados e porque não dizer surrealistas. Em São Paulo já não é mais possível fugir dos engarrafamentos, não tem como optar por trajetos para amenizar a situação quer seja pela manhã, quer seja à tarde.

Sofre aquele que usa o seu automóvel para se locomover, sofre quem se utiliza do transporte público. Padece o motociclista, padece o pedestre, se ferras o ciclista. Todos acabam punidos, todos. São muitos veículos para poucas vias de acesso.

Começo da noite seguia pela Avenida Paulista na faixa central sentido Paraíso, seguia é força de expressão estava parado no trânsito, lento e sem perspectiva de melhora. O semáforo abria, fechava, abria. Nada de sair do lugar. Após minutos de espera conseguimos cruzar o quarteirão, eu e mais alguns carros apenas. Aí tudo se repete: anda um pouco, para, anda.

Confesso que eu não me estresso, aproveito o tempo e vou observando o comportamento de cada vizinho. À minha frente dois veículos, nas faixas à minha esquerda e à minha direita também dois. Percebo que a que vai à minha frente, pelo balançar da cabeça, curtia um som. Pelo retrovisor observo um motorista com duas cabeças, indicando tratar-se de um casal apaixonado. O da minha esquerda cutuca o nariz, tira algo e faz bolinhas, com um peteleco atira-a pela janela. O da direita acende um cigarro, dá uma longa tragada e com a cabeça para fora lança uma baforada que atinge o motoboy que teima em passar pelo estreito corredor.

Abre-se o faro, não havia como prosseguir, mas o condutor do veículo à minha direita toca a buzina sem cessar insistindo para que os demais invadissem a faixa de pedestre, ninguém se abalou. Verde, amarelo, vermelho, verde novamente e a situação permanece inalterada.

Uma vez mais o motorista do carro ao lado mostrando toda sua impaciência volta a acionar a bendita buzina insistentemente. Como da vez anterior, nenhum condutor dá a mínima.

Com um pouco de sorte conseguimos progresso, cruzamos outra rua e atingimos mais uma quadra. A história já é sabida: espera, paciência e perseverança. Quando já nem lembrava mais das buzinadas, aquele sujeito regressa à cena, desta vez com mais vigor, dispara o som a toda, põem a cabeça para fora e grita feito um louco:

- Seus motoristas de merda, tartarugas, molengas.

Nesse instante abre-se a porta do passageiro do automóvel à sua frente, desce um sujeito de alta estatura, chapéu de caubói à cabeça, todo desengonçado carregando em suas mãos um instrumento enorme feito de chifre de boi, se aproxima da janela do nervosinho e grita:

- Neste trânsito errante, só mesmo tocando o meu berrante.

Com habilidade assopra o instrumento emitindo um som alto que a todos contagia, uma vez, outra vez mais, como um boiadeiro que acalenta toda a manada. O trânsito continuou na mesma toada, mas as pessoas o aplaudem e entre assovios e gritos o nervosinho disfarça um sorriso cessando a sua fúria, assim como um animal xucro quando domado.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 09/06/2013
Reeditado em 02/07/2022
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