Rubilota

O sol ainda não se punha no horizonte quando os indícios de uma grande tempestade se faziam notar. Até os vira-latas buscavam abrigo em lugar seguro. As ruas num instante ficaram desertas. A molecada que entulhava as frentes das casas comerciais ou de locais que denunciassem um bom ponto para uns trocados dispersou-se como fumaça ao vento. Aparentemente, Rubilota era a única criatura que parecia indiferente ao temor que se apoderara da população daquele protótipo de cidade. Era uma cidade praticamente desconhecida do resto do país.

A chuva principiou. Enquanto todos procuraram esconder-se, buscando abrigo como crianças temendo o escuro, Rubilota saiu às ruas pulando à semelhança de um macaco agitado e fazendo caretas como um lunático. Na realidade, ele sempre fora tratado pela população como um lunático. Esteve inclusive várias vezes internado no manicômio da cidade, mas, como geralmente era dócil e brincalhão, não chegava a receber tratamento de choque, o que era comum, segundo um dos funcionários daquele estabelecimento. Para as crianças, ele servia de brinquedo vivo. Sempre que passava por local onde havia grupo delas, Rubilota tinha de dançar a dança da corda: duas crianças, segurando cada qual uma ponta da corda, perseguiam-no por um bom trajeto, com o resto da turma atrás gritando e rindo, e o pobre pulava desengonçado até que a meninada se cansasse. Aquilo aconteceu uma primeira vez casualmente e depois virou costume. Sempre que se juntavam mais de três crianças, uma delas logo buscava em algum lugar uma corda, na esperança de fazer a festa com o coitado, caso o encontrassem. As crianças mais tímidas tinham medo dele. Nestas, os pais conseguiam incutir o medo da criatura através das ameaças sobre mau comportamento: “olha, menino (a), se você desobedecer o papai ou a mamãe, o Rubilota vem te pegar”.

A cidade era uma ilha cercada por águas generosas de um rio muito famoso, o qual desaguava num oceano em cujas águas se podia penetrar, a partir do porto local, depois de duas horas navegando-se em barco comum. Demorava, mas quando Rubilota ficava irado, depois de bater de porta em porta pedindo comida e recebendo na cara baldes d’águas das donas de casa ou nas costas vassouradas dos machões, amaldiçoava a cidade e os moradores, assegurando que as águas também ficariam iradas e engoliriam a todos.

Quanto mais a grande tempestade se manifestava, mais Rubilota se alegrava. Ligaram para o quartel da polícia pedindo que se prendesse urgentemente o lunático, pois os habitantes da cidadela partilhavam unânimes da crença de que Rubilota era o responsável pela fúria da natureza e acreditavam que, assim que o mesmo fosse sedado, ficando calmo, a tempestade também se acalmaria. O comandante da PM até tentou executar o desejo dos cidadãos, mas a tempestade veio com tal veemência que destruiu logo o pavilhão onde este se encontrava. O quartel fora construído próximo às margens do grande rio. E assim se seguiu a fúria das águas, pondo abaixo casas, barracos, prédios do governo (não havia na cidade edifício com mais de três andares) e tudo que estivesse em pé, inclusive uma fortificação de pedras sobrepostas construída na época dos escravos e cujo alicerce de mais da metade de sua área servia de quebra-mar. A chuva surrou o lombo de todo organismo vivo ou inerte e as águas do rio se fizeram ondas gigantes e varreram a cidade de ponta a ponta. Não sobrou nada. Nem ninguém. Exceto Rubilota que, por providência desconhecida, foi encontrado na praia de uma outra cidade estirado pelado com as nádegas expostas ao sol, escavando, com seu ronco de carro velho, buracos na areia.

O testemunho de um dos banhistas que o levaram ao hospital foi de que o náufrago dormia o sono tranqüilo de um bebê. Assim que recobrou a consciência, Rubilota pôs-se a narrar a façanha da natureza em sua cidadezinha. Todos se apiedaram dele. A história que ele contasse era de imediato crida pelos ouvintes, porque também estes sentiram o abalo de chuvas fortes naquele período. Passou a ser um homem respeitado pela comunidade local e honrado pelos escritores, que viam em suas narrativas inspiração para novas obras literárias. Não se sabe como, mas a cidade simplesmente desapareceu do mapa. Rubilota passou a ser o único documento histórico de sua existência, enquanto lhe deram crédito. Tanto que uma equipe de arqueólogos veio de um outro país para constatar se a cidade existiu um dia ou não. Ao final de árduos anos de pesquisas, a constatação: a cidade nunca existiu. Com isso cessou a paparicação a Rubilota. De irrepreensível cidadão e honrado intelectual, passou a ser considerado um demente, isto por que insistia em dizer que sua cidade um dia existiu. Desprezado pelos amigos e desacredito pelo patrão, para quem trabalhava como revisor de textos, Rubilota voltou às ruas maltrapilho e desajeitado. Foi internado numa clínica para doentes mentais e lá morreu de tédio.

Dois séculos depois de sua morte, às margens do maior rio do mundo, foram encontrados ruínas de um forte e mais alguns destroços de uma cidade que teria se chamado Rubilândia e que teria submergido como conseqüência de um encontro trágico entre uma tempestade e um maremoto.

Passado de pai para filho, como as histórias antigas, o mito do único sobrevivente, Rubilota, fervilhou na imprensa moderna por um bom tempo, mas não pôde ser comprovado cientificamente porque não havia registro de sua existência nem em cartórios, nem em departamentos de polícia, nem em hospitais, muito menos em manicômios... Havia somente referência, numa obra literária antiga, de um personagem lunático que teria sobrevivido a uma enchente de grandes proporções. Agora Rubilota sobrevive apenas em literatura de histórias fantásticas.

Janete Santos
Enviado por Janete Santos em 03/04/2007
Reeditado em 09/12/2011
Código do texto: T436411