A GULA DE MANECO DAS CORRENTES
 
      
       Contam que lá para as bandas de "Nãoseidonde", um pequeno povoado perdido nas montanhas, vivia um caboclo, que por ter aprontado poucas e boas, na cidadezinha em que morava antes, teve que sair fugido na boca da madrugada.
      Deixou para trás tudo o que tinha, tanto de coisas quanto familiares, inclusive seu cavalo e seu cachorro.
       Lá em "Morro do Vespeiro" como chamava a cidadezinha, deixou uma casa grande, feita de pedras, madeiramento de angico, portas de caviúna e os móveis da mesma cepa o que dizia que iria durar a eternidade. Tinha um poço, que por lá chamavam de cisterna, que nunca faltava água desde que foi cavado. E olhe que logo aos oito metros de fundura já brotou aquela beleza de água. Tão fria, que doía até os dentes do povaréu que vinha buscar água do poço da casa do "Nhô" Barduino - como falavam - e de "Nhà Tónha sua mulher.
      O pessoal do lugar até chamavam a chácara de Balduíno e de Dona Antónia de "Ôio Dágua" devido essa fartura de água no poço.
      - Pois não é que a perfuração deu em cima de uma mina de água! Enquanto em suas casas tinham poços de até quinze metros de fundura e nada de água.
       Balduino também tinha um filho de nome Odair, que a molecada chamava de "Dair".
Balduino mesmo falava: - Tenho só esse "fío" porque não deu tempo de fazer outro, ô desgraceira! Tive que sair fugido.
       Era muita "aprontação" junta, bebia e não pagava. Comprava e ficava devendo. Punha água no leite, e, foi descoberto nessa malandragem...
      E olha, que não era por falta de dinheiro: ele e sua Tónha, os dois, eram herdeiros. O que lhe faltava era mesmo vergonha na cara!
      Deixava as cabras soltas e comiam toda a horta dos vizinhos. Seus gatos eram ladrões, roubavam carne e linguiça de cima da mesa da casa dos outros, seu cachorro "teretetê" mordia as pessoas ; e por aí vai...mas o pior de tudo foi que o compadre Juvenal de Alvarenga Prado, pegou Balduino de trololó com sua mulher, a comadre Leocádia. Os dois sozinhos, abraçadinhos na dispensa. Foi tiro pra todo lado. Juvenal  pulou mais "que tatu faqueado" e escafedeu-se num grotão, e saiu  "que nem" garça correndo num banhadão e sumiu de vista.  
      Acontecido isso, Balduino veio se esgueirando que nem cobra de madrugadão, bateu na porta dos fundos, sem se levantar, para se despedir de Tónha e do Dair. "Graveto", seu cachorro, parecia que ia quebrar a boca de tanto latir. Não adiantava Balduino fazer: "Chiuuuuu Graveto! Sou eu...que nada, Graveto latia mais ainda, pensava que era cobra, uai! Ratejando desse jeito!...
      Dona Antonia, já quase sabendo que era Balduino, - o boato já tinha corrido que nem fogo no palheiro -  pegou uma colherão de pau, daquelas de mexer doce de abóbora, tão grande que mais parecia um remo, abriu a porta e desceu no lombo de Balduino, que nem gritar pode para não alertar o compadre Juvenal que ainda estava de tocaia.
      Deu no que deu. Todo dolorido, lanhado de espinhos, sujo que nem andejo, só sussurrou: - Eu vô mas vórto,. Bêjo mô bein, e bêjo no Dair. E se mandou embora.

      O tempo passou. Como diz o ditado: - O tempo cura todas as feridas. Mas no caso de Balduíno eram muitas feridas, e tinha uma ferida que ainda estava para ser feita. Era a da bala do trabuco de Juvenal. Deus me livre - disse Balduino! Vou ficando por aqui mesmo em "Nãoseidonde". Já que ali não aprontou nada, aprendeu a lição, e era muito querido pelos "nãoseidondenses". Como titular da conta no banco de "Peixoto" - uma localidade maior, que tinha uma agência bancária, retirou uma boa quantia e comprou a casa onde morava agora. Vivia bem. Plantava, criava galinhas, porcos, cabras, tinha umas vaquinhas de leite e dois ótimos cavalos, tanto de monta como de tração. Fez uma boa horta, plantou um pomar de frutas variadas. Na verdade não lhe faltava nada, só mesmo a  sua gente, de que tinha muita saudade. Da Tónha, do Dair, e também de seus companheirinhos seu cachorro o Graveto e seu cavalo o Mumbava...
      Um belo dia, quem vê chegando à sua casa? O "Maneco  das Corrente" que morava também em Morro do Vespeiro, e sempre ia até sua casa na chácara "Oio Dágua" tomar uma boas canecas de água do poço, depois um café forte da Tónha, acendia um "paiero" pitava e contava alguns causos, sempre de olho no que comer!
      Ele se chamava "Maneco das Correntes" porque vivia do expediente de tirar carros, carretões de boi, carroças e charretes que atolavam na estrada quando chovia (e como chovia naquelas serras de Monte do Vespeiro).
      Lá ia o Maneco montado num boi. Não era tonto! O boi é mais forte, e era um auxiliar melhor que um cavalo. Levava nas bruacas (Malas de madeira cobertas de couro cru, ou de cabra ou gado) uma de cada lado da anca do boi, as tralhas todas: correntes (por isso o apelido) enxadão de cabo curto, enxada idem, picaretinha e outras geringonças. Era o guincho caipira.
      Assim ganhava seus trocados, que dava para ir vivendo, não fosse a fome canina que tinha. Canina é pouco. De uma matilha de cães. O que ganhava gastava (ainda bem) em comida. E dizia que continuava com fome.
      Mas, Balduino ficou contente como se tivesse recebendo um parente chegado.
      Maneco foi logo dizendo que estava roxo de fome. Balduino diz: - E eu não sei então Maneco? Péra um pouco que já ponho a mesa pra nóis comê. Na despensa Balduino tinha uns varais de bambu, com linguiças, toucinho defumado, peixes defumados também, tudo pendurado. Em cima de uma bancada baixa, tinha pilhas de queijo, palmitos inteiros. Além de latas e mais latas de carnes de porco fritas e em conserva na própria gordura. Arroz estava pronto, que já fazia para almoço e janta, feijão também. Foi à horta, colheu alface, rabanetes e tomates para uma salada, e aproveitou cortar um maço de couve que logo aprontou. Pôs a mesa sentaram-se. O Maneco das Correntes, atacou parecia uma draga.
      O visitante com aquela fome lendária, comia e... comia. Enquanto isso respondia as perguntas impacientes de Balduino, seu hospedeiro.
       - Como vai meu filho Dair, Maneco? - Pergunta Balduino.
       - Mais forte que meu boi das corrente. Casá num casô mais tem mais fio que rato de paió. Mué oiô prele tá prenha.
      - E como vai a Tónha - Êta sôdade danada sô!
      - Fortona e bonitona que nem sempre.
      - E o casarão de pedra, como é que tá?
      - Aquilo é forte que nem castelo sô. Sempre recebendo gente no Ôio Dágua.
      - E o meu cachorro o Graveto?
      - É mais respeitado que os guarda da Brigada. Late e rosna até pra sombra.
      - E meu querido cavalo Mumbava hein?
      - Vai assustar de ver ele, tão gordo e saudável.
       Nisso, todo aquele mundaréu de comida o Maneco deu fim e ainda disse que estava com fome! Balduino falou para o visitante: - Tem dó  Maneco, ocê comeu toda minha comida de um mês. Tem mais não! Enche o resto com água. Num leva a mar não...e volta a perguntar da família e da sua terra.
        Maneco das Correntes, de cara azeda fala: - Pregunta  o que quizé...!
        - Eu queria saber melhor de meu cachorro o Graveto...
        - Morreu de morte morrida.
        - Mais ô Maneco, cê disse que...
        - Me enganei táva distraído com a fome.
        - Então...?
        - Morreu foi o que disse.
        - Do que que há de ser essa morte então?
        - Ficou com o osso do Mumbava atravessado na garganta.
        - Mas quer dizer então que meu cavalo Mumbava morreu? (Quase chorando.)
        - Morreu estrebuchando. E dizem - "Cruz em Credo", que chamava pelo dono.
        - De que morreu? ( Lágrimas.)
        - De tanto levar a família e água para lavar o túmulo da Tónha.
        - Misericórdia, a Tónha morreu??
        - Morreu.
        - E de que morreu minha Tónha? (Muitas lágrimas)
        - De tanto chorar no velório do Dair.
        - Que lástima Maneco, então Dair morreu?
        - Morreu.
        - De que?? Já num guento mais!
        - O casarão de pedra caiu em cima dele.
        - Então aquela casa que ocê mêmo disse que era um castelo, caiu???
        - Caiu! Foi um baruião.
        Vendo os olhos de Maneco passearem para os lados da despensa, que era fechada só com uma cortina de pano ralo, e o danado pegava os ossinhos que ficaram e roía, e a barriga do infeliz ainda roncava; desconfiou que o hospede só estava falando tudo ao contrário, porque antes estava enchendo a pança, depois que acabou, estava se vingando. Pegou sua espingarda carregada. Quando Maneco viu isso, saiu correndo tanto, que até esqueceu o cavalo para trás, por não ter tido tempo de montar. E até hoje está correndo...

                                                         
        
A GULA É UM VÍCIO, DE NATUREZA PERVERSA E CRUA/ QUE NUNCA MATA SUA VORAZ VONTADE/ E APÓS O PASTO TEM MAIS FOME QUE ANTES/ IGUAL A TI MALDITA LOBA/ QUE MAIS PRESAS FAZES DO QUE OUTRAS FERAS/ PELA TUA FOME INFINDAMENTE ACESA.

(Dante Alighieri)