Fátima cartomante

Fátima Zoraide, era a dona da banca de jornal que ficava em frente à estação de trem. Além de vender jornais e revistas, ela também vendia, ou melhor, lia, o destino. Certa vez havia lido o destino de Dorisgleison, um delegado bonachão e devagar.

Sua vidência se mostrou tão digna de um homem beato, que ele saiu da banca muito constrangido com todos seus atos ultimamente. Em uma coisa acertou, porém. Ela dissera que, em não muito tempo, ele voltaria a procurá-la, “dessa vez não para revistas indecentes, ou jornal de esporte, mas sim para uma investigação”. Em suas palavras.

E por isso que ele se assustou muito quando, posteriormente, soube do caso que viria trabalhar.

Pela manhã, resolveu esquecer tarô e búzios, decote e saia rodada, tudo. Foi com toda a ética do mundo procurá-la para um depoimento. Fátima Zoraide era a testemunha principal.

Ela estava, como sempre, a comer um bombom com uma expressão de quem se delicia muito, e já desembrulhava um outro. Sua fala, de tão meiga, quase dava sono. Suas bochechas eram rosadas demais e ele sempre quis muito apertá-las. Tinha vergonha, como se pode dizer a uma mulher “por favor, posso apertar suas bochechas?”

Mas se concentrou. “Trabalho Dorisgleison! Trabalho!”. O caso era bem sério. E ela começou a falar:

- Acontece Dórinho meu, que essa estação fica doida em hora de pico! Gente de todo lado, mas ontem, naquele temporal danado, o movimento aqui da banca zerou. Fiquei assim, sem nada pra fazer. Foi quando surgiu o tal do menino. Ele veio disfarçando, mas minha intuição não falhou: ele queria mesmo era ver o destino. Bom, deu que ele logo sentou e fui tirando as cartas. Ele é branquinho de tudo, cabelo mirrado e vermelho, usa um óculos fundo de garrafa. Tem 12 anos.

- Fala devagar que estou anotando, disse.

- Tá! Previ uma viagem, bem próxima. E complicações com isso. Ele correria perigo, mas no fim iria dar certo. Ele ficou perplexo e sem que eu pedisse, ele começou a dar explicações do que faria. Foi aí que caí o queixo!

- Essa parte que interessa. Fale tudo.

- O menino é complicado. Odeia o pai riquíssimo e quer fugir para ficar com a mãe que vende bala de coco na Praia Grande. Só que antes disso, ele quer ver a desgraça do pai. E então, com sua inteligência esplêndida, está há meses planejando um seqüestro, em que ele mesmo seria o seqüestrado! Assim, olha: ele contatou amigos seus, bem mais velhos, todos do Clube de Xadrez, que o pai o obriga a ir desde os 3 anos. Esses amigos seriam os seqüestradores. Com o dinheiro do resgate, daria 1/3 para os amigos e ficaria com o resto. Com essa grana, na mesma hora da simulação do resgate, daria o pinote e aqui mesmo na estação pegaria o ônibus para Praia Grande. Da Praia Grande, eles partiriam para Jericoacoara e ficariam por lá, a mãe e ele.

- Sim, sim...

- E o mais interessante é que o menino não falhou em nada. Ontem, já fazia 4 dias de desaparecimento dele em casa. Na madrugada de ontem, o pai recebera um bilhete indicando que deveria comparecer, logo aqui atrás da banca com a grana do resgate em uma maleta preta no horário certo e pegaria o menino. O pai chegou sozinho num carrão que nem sei o nome, de terno e gravata. Parecia importante. Esperou aí atrás com a maleta em mãos. Daí chegou um fusquinha velho, caindo aos pedaços mesmo. O pai, desculpe a expressão, mas burro que nem um porta, quando viu o filho jogou a maleta dentro do fusquinha. Não deu outra, os caras fugiram com o garoto por um caminho que o pai jamais conseguiria alcança-lo. Agora, o garoto deve estar debaixo do guarda-sol. Feliz da vida, lá no Nordeste.

- Sei, sei, e como posso acreditar que isso tudo é verdade? Você mais inventa o destino do que prevê, adora contar histórias.

- Pois acredite: eu que disse pra ele fazer tudo isso, o doido queria matar o pai e ainda por cima às facadas, aqui na frente da minha banca. Tudo bem que ia baixar repórter adoidado e eu ia ganhar propaganda de grátis. Mas veja só, olha bem pra minha carinha... eu jamais deixaria isso acontecer.

Dorisgleison era um homem que se deixava facilmente levar por melindres de mulher e logo quando ela viu que seus olhinhos tremeram, pegou um alfajor derretido e deu na boca dele.

- Mas e agora? O que faço?

Falava ainda de boca cheia, com a testa franzida, pensando muito.

- Bom, filhotinho...

- Filhotinho??

- Sim, filhotinho, você, Dori, credo! Eu penso assim “o que é um peido pra quem está cagado?” Nada, certo? Então, vamos matar o pai! Acabou a história”.

- Zoraide, tudo o que você falar aqui será usado contra você no tribunal!

- Ah! Tribunal? Ta louco, Dorinho?

- Não! Não estou louco não. Você pode ser mulher, pode ser vistosa e tudo mais, mas a Lei é a Lei. A ética acima de tudo, sou um delegado, esqueceu?

- Sei, quer me fazer falar tudo isso pro juiz né?

- É, menos a parte de matar o pai.

- Sei, e se eu te fizer uma proposta?

- Meu senhor amado santíssimo papa João Bento Paulo XXIII.

- Sim, propostinha dengosa. Coisa boa.

- Diga mulher, diga!

- Bem, como eu ajudei o cabelo de fogo com o plano todinho, ele me deu uma grana. Grana boa. Te deixo metade e você some desse caso.

- Hehe! Quanto? Hein? Quanto?

E Dorisgleison pensou na piscina de 1000 litros pras crianças no quintal e no escapamento do chevete. Também pensou em um SPA pra mulher, que estava um botijão. E quem sabe ir lá ver o menino em Jericoacoara, com a Fátima, é lógico.

Laís Mussarra
Enviado por Laís Mussarra em 17/04/2007
Reeditado em 18/04/2007
Código do texto: T453135