O Livro de Simpatias

Eu estava me preparando para a morte de minha mãe, ela alucinava em nossa frente, eu e o médico não sabíamos o fazer quando ela começou a falar conosco, como se nós não estivéssemos lá...

---- Mãe? Você está ouvindo o que a gente esta falando?

---- Existe uma diferença muito grande entre acreditar em algo e saber de algo, eu sei de algumas coisas que nunca contei a ninguém. Na verdade eu jurei que nunca contaria a ninguém, jurei que nunca contaria pra você meu filho!

---- Acho que ela não está nos ouvindo doutor.

---- Talvez ela queira que você escute.

---- Escutar o que?

---- Entenda filho! Eu jurei pela minha vida que nunca contaria isso pra você!

---- O que mãe?

---- Não jurei pelos deuses nem pelo nome dos santos, por que eu sei que não se deve envolve-los em nossos assuntos... Não jurei por ninguém que eu amava... Não queria prejudicar outras pessoas caso eu falhasse...

---- Do que você está falando mãe?

---- Agora minha vida não vale mais nada... Estou nesse hospital imundo cercada de incompetentes!

---- Ela não quis dizer isso doutor... Você tem sido muito bom...

---- Deixe ela falar.

---- Então eu vou te contar... E se eu morrer, não terá importância!

---- Claro que terá importância mãe... Não fale isso!

---- Eu preciso te contar o que aconteceu com seus irmãos.

---- Você já contou... Meu irmão morreu... Foi só isso... Já faz muito tempo mãe...

---- Não! É como se fosse ontem... É como se eu ainda ouvisse o choro de todos eles... Cada vez menos choro...

---- Mãe se acalme! Doutor tem algo que possa dar para ela?

---- Espere! Vou buscar algo.

---- Esqueça meu irmão mãe...

---- Você teve seis irmãos! SEIS! Morreram um depois do outro! Todos os seis!

---- Isso não é verdade mãe! Tive um irmão gêmeo sim, mas, foi só isso...

---- Ninguém nunca falou sobre isso pra você! Todos evitam de falar sobre isso comigo também... Mas eu preciso lhe contar a verdade... Você deve a sua vida a um santo!

---- Mãe! Você está delirando!

---- Você deve a sua vida ao São Longuinho! Já ouviu falar?

---- Sim mãe... Quem é que não ouviu falar do São Longuinho... Onde o médico se meteu...

---- Estou aqui! Levante a manga dela por favor...

---- Ela está piorando... Acha que eu tive seis irmãos e quer me contar algo sobre eles...

---- Sério?

---- Doutor? Não vai aplicar a injeção?

---- Não! Essa história dela é famosa... Ninguém nunca entendeu o que aconteceu com as crianças...

---- Que crianças doutor?

---- Oras... Os seus irmãos mortos, você não sabe?

---- Eu só tive um irmão!

---- Escute meu filho! Você teve seis irmãos! Quem melhor do que eu para saber quantos saíram de mim?

---- É verdade garoto! Você é o único sobrevivente de sétuplos!

---- Isso não é possível doutor! Como nunca me falaram disso.

---- É complicado. Seus irmãos morreram... Sua mãe estava muito deprimida... Sempre foi um assunto tabu na cidade. Posso conseguir as certidões... Se você se interessar...

---- Eu nunca fui bonita! Eu não me achava feia, mas, acho que me acostumei a ser eu mesma... Também não era rica, mas, eu tinha minha própria casa... Era uma casa velha... Mas era minha...

---- Mãe! Do que você está falando? E os meus irmãos?

---- Eu nunca iria conseguir alguém que gostasse de mim...

---- Mãe?

---- Deixe ela falar! Talvez ela volte a falar das crianças!

---- Um dia eu achei um livro escrito a mão... Estava no lixo da Dona Ivete no dia seguinte em que ela faleceu...

---- A curandeira? Eu... Eu lembro dela...

---- Era um livro escrito a mão... Cheio de simpatias para todo o tipo de coisa... Eu tinha perdido uma colar a alguns meses... Não tinha nada a perder, testei uma oração pro São Longuinho...

---- Sei...

---- No caminho de casa, achei o meu colar na rua. Dois meses depois, meu colar estava na rua esperando por mim!

---- E depois você fez uma simpatia pra arranjar um marido? É isso mãe?

---- Era uma das primeiras que eu li... Achei bem simples, eu nem acreditava de verdade, mas, como funcionou pro colar, peguei uma estátua de Santo Antônio, vendei os olhos dele e coloquei na geladeira... Embrulhei ele num saco e coloquei na gaveta das verduras... Pedi que ele me desse um homem que fosse cego aos meus defeitos e queria rápido. Enquanto não viesse para mim eu não tirava o santo de lá!

---- E dai mãe?

---- No dia seguinte conheci o seu pai...

---- Você também nunca me falou dele...

---- Ele era perfeito para mim... Namoramos... Casamos...

---- Já sei! E tiveram seis filhos!

---- Não! Nós tentamos muito... Muito mesmo... Mas oito anos anos depois ainda não havíamos conseguido.

---- Você podia ter tendado assistência médica para fertilidade...

---- Doutor! Nós tentamos de tudo! Eu juro que tentamos de tudo!

---- E então mãe? O que aconteceu?

---- Achei outra vez o livro de simpatias... Tinha uma que era exatamente o que eu precisava! Parecia meio cruel, mas, eu não podia imaginar... Apenas queria ter um filho... Então fiz... Eu só fiz sem saber...

---- Mãe tenha calma! Doutor? Você não pode dar só um pouco disso pra ela?

---- Deixe ela dizer o que quer, depois eu aplico a dose...

---- Eu roubei uma estátua de Nossa Senhora de uma igreja...

---- Mãe! Por favor... Isso é ridículo!

---- Eu tirei o menino Jesus que ela segurava! Eu passei a tarde para descolar ele sem quebrar a santa! Eu juro que não sabia... Eu... Não...

---- Respire mãe!

---- Depois eu escondi o menino... Disse que só devolveria depois que conseguisse engravidar...

---- Doutor! Isso é ridículo! De um calmante pra ela!

---- Deixe ela falar!

---- Escondi embaixo de um velho armário... Tudo na nossa casa era tão velho... Eu queria ter um filho para algo ser novo na minha vida... Eu sonhava com o bebê fazendo o chão de madeira tremer enquanto aprendia a correr pela casa... Eu queria descobrir com ele cada frestinha daquela casa... Sabe? Eu só queria ser mãe!

---- Certo... E depois?

---- Eu sonhei com a Nossa Senhora aquele dia... Ela estava chateada...

---- Claro! Você tirou o filho dela!

---- Eu achava que era só uma simpatia! Ela me acusou de ter roubado o filho dela e eu não neguei! Eu disse a ela que o devolveria se eu engravidasse... Ela suspirou e me perguntou quantos filhos eu queria ter... Eu disse que um estava bom...

---- E então?

---- Eu acordei com seu pai tarado do meu lado... Não sei com que ele havia sonhado... Mas nunca havia o visto tão disposto...

---- E então engravidou?

---- Sim... Nas semanas seguintes comecei a passar mal...

---- E como foi?

---- Estava tudo indo bem até que os exames nos disseram que eram sete crianças!

---- E o meu pai?

---- Nunca mais o vi depois disso... Fugiu como um covarde! Naquela noite dormi chorando e sonhei outra vez com a santa.

---- E o que ela disse dessa vez?

---- Falou que eu engravidei e ainda não havia devolvido o filho dela...

---- Você não fez o que prometeu é isso?

---- Pior que isso! Eu acordei e fui direto pegar o menino debaixo do armário... Ele não estava mais lá! Eu revirei a casa... Arrastei os móveis... E não achei nada! A minha gravidez inteira eu sonhava com a santa me acusando... Ela sempre dizia a mesma coisa...

---- O que mãe?

---- Me perguntava se eu sabia como era a sensação de perder um filho...

---- Mãe! Se você acredita mesmo nisso? Por que não tentou o São Longuinho?

---- Eu tentei! Foi a primeira coisa que eu pensei depois de revirar a casa!

---- E?

---- Não funcionou... Eu não sabia por quê, mas, não funcionava mais...

---- E depois?

---- Depois vocês nasceram... A cidade fez festa... Muita gente veio ajudar... Vieram me dar as coisas que o covarde do seu pai não quis me proporcionar... Vocês cresceram com saúde até quase completarem um ano...

---- Certo, e depois? Sonhou outra vez com a santa?

---- Era impossível dormir naquela casa... Haviam sete bebês chorando a todo volume e eu só tinha duas tetas... Os vizinhos me ajudaram com mamadeiras... Conseguimos alimentar todos, mas, era tarde da noite e vocês ainda choravam...

---- Certo...

---- O choro de repente ficou mais baixo... Eu fui lá ver... E um deles não estava mais respirando... O médico falou que isso acontece muito, mas, eu lembrava do que a santa havia dito em cada sonho sobre perder filhos...

---- E depois?

---- Eu cheguei em casa e a santa estava lá... Na minha frente!

---- Você teve uma alucinação?

---- Não! Ela era muito real! Ela estava muito brava e chorava nervosa... Disse que eu tinha seis dias pra devolver o filho dela, senão a cada noite haveria um filho meu a menos no mundo...

---- Que horror mãe! Você quer que eu acredite que a Santa matou os meus irmãos?

---- Não! Eu matei eles quando perdi o filho dela! Uma mãe é capaz de fazer qualquer coisa pelos filhos... Eu sei disso... Não posso culpá-la.

---- Doutor? Isso já não foi longe demais?

---- Calma! Eu estou curioso... Você não está?

---- Eu clamava por todos os outros santos... Mas eles pareciam não se importar comigo... A cada noite um filho morria... Sem explicação nenhuma... Eu tentei comprar um outro bebe de gesso para colocar nas estátua, mas, eles continuavam morrendo!

---- E eu? Por que não morri então?

---- No ultimo dia... Com só você chorando num quarto sujo... Eu gritava para são longuinho aparecer... Eu implorava perdão para Nossa Senhora mas ela não me ouvia...

---- E?

---- E São Longuinho bateu na minha porta... Eu não o conheci... Ele parecia um mendigo, eu abri a porta e ele foi entrando.

---- E você deixou?

---- Eu não sabia quem ele era, mas, estava desesperada e cansada demais para brigar ou resistir a um assalto...

---- E então...

---- Ele se apresentou e eu nem conseguia acreditar...

---- Você acreditou nele?

---- Sim! Ela sabia de tudo! Eu não havia contado para ninguém, mas, ele sabia de cada coisa que eu havia feito...

---- E ele achou o menino pra você e me salvou? Foi só isso?

---- Não... Ele também estava brabo...

---- Mas por que?

---- Eu achei o colar que eu havia perdido... Mas nunca havia dado os três pulinhos que a simpatia prometia...

---- Certo... Por causa disso ele não queria achar mais nada pra você...

---- Exatamente...

---- Então você pagou os três pulinhos?

---- Ele disse que haviam juros de três pulos ao dia... Já eram mais de nove anos... Ele disse que aceitaria dez mil pulinhos para quitar a divida...

---- Dez mil?

---- Faça as contas... Ele até me fez um desconto pra ficar um número redondo...

---- E você pulou? Digo... Pulou dez mil vezes?

---- Uma mãe é capaz de fazer qualquer coisa para os filhos... Meu corpo todo doía, meus pés haviam se tornado uma única bolha que ardia e eu continuava pulando e contando... Nunca vou esquecer o barulho que aquele chão velho de madeira fazia enquanto eu pulava... Levei horas... Mas entreguei cada maldito pulo para aquele desgraçado sádico!

---- Mãe? Sabe que isso é impossível não?

---- Depois... Ele sorriu pra mim... Agradeceu... E disse pra olhar na geladeira...

---- E ele estava na geladeira esse tempo todo?

---- Não! Lá estava a estatua de Santo Antônio... Eu fiquei tão eufórica quando conheci seu pai que esqueci de tirar ele de lá.

---- Mãe? Você nunca fez uma única simpatia direito na vida? É isso?

---- Eu tirei ele de lá...Desvendei os olhos dele... Pedi desculpas... São Longuinho me disse que foi ele quem escondeu o menino Jesus... Por vingança...

---- E depois? Você achou o menino?

---- Sim doutor! São Longuinho me disse para procurar novamente embaixo do armário... Era quase impossível me agachar, mas, eu me agachei... Coloquei a mão lá e não encontrei nada...

---- Então São Longuinho mentiu pra você?

---- Não... Logo em seguida o chão cedeu em baixo de mim... O assoalho era muito velho e depois de dez mil pulos não aguentou. Eu caí no porão e encontrei o menino em um ninho de ratos... Eu estava muito machucada, mas, me arrastei até o maldito altar, e devolvi o filho pra santa... Naquela noite você chorou a noite inteira... Era o som mais lindo que eu já havia ouvido...

---- E essa é a história que você tinha pra me contar?

---- Sim... E agora posso em morrer paz...

---- Não diga isso mãe! Mãe? MÃE!?

---- Ela está morta...

---- Doutor... Você não vai fazer nada?

---- Não.

---- Como não?

---- Ela jurou não contar a história... Jurou pela vida dela... É justo que morra agora que quebrou o juramento...

---- Meu Deus! Como pode dizer isso? Que tipo de médico é você? Faça alguma coisa! Talvez ainda de tempo!

---- Eu não sou o médico... Na verdade ele está bastante ocupado agora...

---- Mas como não é?

---- Sou o demônio aprisionado no livro que sua mãe achou no lixo... Sou eu quem faz tudo acontecer... O livro é seu agora. Se for usá-lo, use-o direito!

---- Doutor! Respeite pelo menos a morte da minha mãe! Isso não é hora para este tipo de brincadeiras!

---- A santa tentou muito avisar sua mãe sobre o que eu faria se ela não completasse o ritual... Nunca esteve furiosa, a culpa que sua mãe sentia fez ela pensar isso...

---- Não era um ritual! Era só uma simpatia boba!

---- Eu nunca vi diferença... Se sou invocado com sangue ou com um ato de violência, eu venho do mesmo jeito.

---- Foi você que escondeu o menino Jesus? Foi você?

---- Não... Foi apenas um rato... Sua mãe não pensou direito na hora de escondê-lo...

---- Sabe? Eu quase acredito em vocês! Por via das dúvidas, vou achar o tal livro e botar fogo nele!

---- O livro é seu... E eu não acharei ruim se você destruir minha prisão... É claro... Se você não conseguir achar o livro, você pode me chamar na forma de São Longuinho...

---- Desgraçado! Você está brincando comigo! Está brincando com a morte da minha mãe!

---- Até outro dia meu novo mestre!

---- Volte aqui! Onde você está?

O médico sumiu em minha frente, eu não sabia mais no que acreditar... Depois usei o São Longuinho para encontrar o livro, paguei os pulos imediatamente. E lendo a simpatia para ter muitos filhos, ouvi a voz do velho demônio dizendo em minha mente que ela fez um ritual para obter muitos filhos, mas, havia pedido apenas um... Ele tentava me convencer de que não foi mau ou injusto com ela... Acho que concordo com ele, ela não leu direito, nem fez direito.

Não consegui destruir o livro... E pretendo utilizá-lo o mínimo possível, para nunca correr o risco de cometer os mesmo erros de minha mãe.

=NuNuNO==

(Que não imagina que tipo de devoto torturaria seus próprios santos)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 21/11/2013
Reeditado em 21/11/2013
Código do texto: T4580038
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