PÃES, PÃES, PÃES, Ó PÁ!

Seguindo o hábito de todas as manhãs, o molecote adentrou a panificadora, sentindo o prazeroso e inconfundível aroma de café-expresso sendo servido na copa, saindo fresquinho, fumegante, e o cheiro de pão da última fornada, quentinho e crocante. Hum! Inigualável e saboroso cheirinho de manhã. Ao chegar a sua vez na fila, rente ao balcão, pediu como de costume:

- Me vê seis pãos!

O dono da padaria, o Seu Pedro Baltasar, português nato, vindo da Póvoa de Varzim, cidade ao norte na amada terrinha, se espevitou. Ergueu-se de sua escrivaninha, de onde estrategicamente monitorava as funcionárias do balcão, em presteza e eficiência entre baguetes e broas, mensurava a quantidade de pingados de cafés-com-leite e as doses de biritas que o rapaz da copa servia, além das camadas de Doriana que passava no pãozinho na chapa, e de onde, também, podia (e adorava) vigiar a moça do caixa contando a bufunfa que entrava e a que saía em troco. Não admitiria nunca, jamais, um brasileiro macular a pureza de seu idioma. Avançou furioso, contornando o balcão como Fernão de Magalhães a contornar o estreito no extremo sul da América. Sua pança protuberante, designer de regalos e gulodices, se assemelhava ao bumbo do Zé Pereira, e arfando, e babando, e bufando, estourou:

- Não são seis pãos e sim seis pães. Pães! Brasileiro burro. Apedeuta. Pobrezinha da língua-mãe, pobrezinha. Brasileiros, assassinos de idioma. É culpa de Cabral, oras, pois, é culpa de Pedro Álvares! - corrigia, ora mirando o pobre do rapaz, ora mirando a imagem da Sagrada Família na prateleira da padaria. De família tradicional, católico fervoroso, fora batizado com o nome Pedro em homenagem ao padroeiro de sua cidade natal, o apóstolo pescador e o Baltasar era referência e uma reverência a um dos Reis Magos.

O garoto, rosto corado. deixou o recinto carregando os pães, Esquecia-se sempre que o portuga da padaria era um cri-cri com esse negócio de se falar corretamente, prestimoso com a língua vernácula, porém no dia seguinte ao chegar a sua vez na fila... Novamente:

- Vou levar seis pãos!

- Seis pães. Pã-es! Pê-a-til-é-esse!!! Pães e não pãos! – urrava Seu Pedro, zeloso como um Eça de Queiroz para com o padrão culto de nosso linguajar e continuava a ladainha, falando com os fregueses na fila em seu sotaque da região do Porto, apontando ao rapazote- É assim aqui, nessa terra do cão. Oh, seus meus patrícios soubessem o quanto tenho penado aqui onde Judas perdeu as ceroulas. Mortadela pr’sse povo é mortandela, salsicha é salshisha e toucinho de porco é bacon. Brasileiros de merda. Povo de merda. Desrespeitam a sagrada língua. Lapsus linguae!

Envergonhado o garoto saiu, levando consigo os pães e ódio, muito ódio de Pedro Baltasar, o mais ferrenho defensor da Última Flor do Lácio. Jurava não mais cometer tal gafe, mais pela ridicularização na frente dos outros do que por razão outra. O que afetaria a ordem do universo se pronunciasse pãos ou pães? O sabor do pão não seria o mesmo? O preço também? O lusófilo bem que podia arquitetar uma promoção e oferecer um desconto aos fregueses que seguissem a norma culta da língua que tanto prezava, pensou com seus botões. Mas no dia seguinte não houve juramento que o acautelasse dos deslizes nas concordâncias e discordâncias nominais. Os berros de Seu Pedro, que avançava feito um Eusébio, bola aos pés invadindo a grande-área, deixou isso bem claro:

- Ai ai, e olha que hoje acordei com os pés de fora, não me venhas com galhófas. Quantas vezes estarei a te dizer, gajo, que o plural de pão é pães. E é tudo culpa de Cabral, é culpa de Cabral. Povo burro! Burro e preguiçoso. Isso é preguiça. Brasileiro diminui tudo com preguiça de falar, motocicleta virou moto, fotografia virou foto, cinemateca virou cinema e discoteca virou baile. Ó pá!

Na fila sempre havia um ou dois que concordavam com o dono da padaria e sempre tinha alguém que ria, mas a maioria não gostava daquela cena, não. Até porque eram todos brasileiros e o Seu Pedro generalizava, pegando pesado, ofendia os brazucas. Tinha gente preferindo andar uns quilômetros a mais até outra padaria a ter que ouvir aquelas sandices.

“Que portuga folgado, sai lá da Ibéria, come seus bacalhaus lá e vem peidar aqui”, resmungou um homem engravatado.

“Esse luso gordo vem pra cá, enriquece às nossas expensas, do dinheiro que damos pra ele, também à custa dos empregados que explora e fica ai xingando nós, brasileiros”, murmurou um velho sarará com boné desbeiçado do Flamengo.

O rapaz pensou em bolar uma resposta, e das boas, ao portuga pão-duro. Já estava enfezado com aquela prosopopeia toda. Porém, na manhã seguinte deixou a padaria com os pães sob o aguilhão das imprecações do lusófono intransigente. Elaborara uma resposta, mas assustado com o sobressalto do Português indignado, dando o seu piti matinal, esqueceu-se do que falaria. Seu Pedro gritava e ao mesmo tempo mirava a imagem da Sagrada Família, para que lhe desse forças.

- Oh, mar salgado quanto do teu sal são lágrimas de Portugal! Brasileiro não presta. Por isso que esse país não vai pra frente. Nem falar direito consegue. Distorce tudo, deturpa tudo, e gostam de enfeites e penduricalhos. Acham que palavra é carro alegórico, já reparaste que o brasileiro fala 'adivogado' e não o corretamente advogado - lamentava-se o brioso portucalense.

No outro dia o jovem perfez o caminho de casa à panificadora repetindo mentalmente qual mantra budista: pães, pães, pães, e, recitou tanto o mantra que estava quase alcançando o nirvana na fila do pão. Seu Pedro não o pegaria mais em cacoépias: pães, pães, pães, olhava com um olhar búdico pro portuga, pães, pães, pães, estava chegando a sua vez, pães, pães, pãos!!! (foi o que balbuciou quando chegou ao balcão), força do hábito, vazou automaticamente. Apagou-se a luz celestial do nirvana, bem-vindo de volta ao sansara.

- Assim irei aos arames! És pães, filhote de ameba! Ó povinho burro, ó pá! E não é só falando, não, na escrita também, encomendei uns cartazes aqui para a minha padoquinha e olha que o letrista fez , escreveu maisena com ‘z’, que calinada! E em vez de escrever muçarela, escreveu foi mussarela e sem dizer dos que chegam aqui e pedem duzentas gramas de salame. Só se for gramas de feno, bando de asnos. Duzentos gramas. É assim que se fala! Bradava o guardião de todos lusos-parlantes, herói camoniano. - Brasileiros de merda. Ainda fazem anedotário dos portugueses, dizem que português é que é o burro, ó pá. É tudo culpa de Cabral.

- Mas maisena não é com ‘z’? Indagou alguém da fila, um dos que anuíam com a implicância do portuga sobre a prosódia da língua materna.

- Não, com ‘z’ é só na marca de uma embalagem, aliás, maisena, não, amido de milho. Por obséquio!

Com ar desafiador o garoto se interrompeu. Não mais levaria desaforo pra casa:

- Brasileiro burro, é? Saiba que meus avós são portugueses – revelou–lhe.

Isso não amainou nem um pouco a fúria de Seu Pedro, a ira de um mar encrespado.

- Rebeubéu, pardais ao ninho! Ah, vás chatear o Camões, avô português? Só se for açoriano. Só pode ter vindo dos Açores, ó pá! Brasileiros de merda, povinho sem futuro.Tanto lugar para Cabral ancorar nesse mundo de Deus e foi para nesses confins! Exclamava olhando ao céu, lastimoso, como um ator numa peça de Gil Vicente.

“Tá tão lanhado com o Brasil, volta pra Lisboa”, pensou um senhor, que seria o próximo da fila.

“Culpa de Cabral é um escambau”, deixou escapulir uma senhorinha de cabelo lilás, lá atrás.

“Esse portuga balofo podia fechar esse troço e ir dar aula de Português nas escolas, né”, rezingou uma mulher, que já demonstrara inquietação, consultando as horas no visor do celular de minuto em minuto. Chegaria atrasada no serviço por causa dos chiliques de Seu Pedro.

Enfim, chegou o dia D. O rapaz cansara de engolir quieto, já tava fula-da-vida, não ia mais passar carão na frente de senhor-ninguém. Ah, aquele lusitano sovinas dançaria o fado em suas mãos. Chegou ao balcão e pediu de propósito: - Quero meia dúzia de pãos!

Seu Pedro Baltasar, o sangue ibérico a fervilhar- lhe à mente, saltou, em seu faniquito habitual, como todas as manhãs, igual a um cachorro pertinaz, que incansável e obstinadamente, avança ao portão, a latir para o carteiro, todos os dias.

- Apedeuta. Brasileiro burro. Pães e não pãos! Já te disse milhões, trilhões de vezes.

O rapaz pegou o pacote de pães, mas estancou, mirando o estressado português.

- Que foi rapagão, o que queres mais, porquê essa cara de caso, ora, pois?

- Estou com uma dúvida – o jovem, ensaiava um sorriso traquinas no canto da boca.

- Diga logo, cabeça de alho chocho. Desembucha aí, ó pá!

E o que o menino diria faria a fila do pão e os funcionários da padaria vibrarem como um drible da vaca do Neymar em cima do Cristiano Ronaldo. E faria Seu Pedro Baltasar ter vontade de correr feito de D. João VI fugindo de Napoleão e suas tropas.

- Eu não sei se mando o senhor tomar no cu, nos cus ou nos cuães.

Inspirado nas piadas do amigo Daniel Corte, o stand-up sentado na cadeira

Ricardo Bispo
Enviado por Ricardo Bispo em 22/11/2013
Reeditado em 22/12/2013
Código do texto: T4581991
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