Enquanto isso, na bodega...

Todos conheciam o Olavo pelas turras que tinha com seu compadre, o Rui. Viviam discutindo supostos textos do suposto escritor e o compadre sempre dava um jeito de dizer que nunca estavam bons. Aconteceu no dia em que descobriram o corpo do Inácio dentro do bar – já fechado – da Dona Luisa, e o Rui mandou o Olavo fazer o início de um conto. O primeiro parágrafo somente, que o resto ele lhe ditaria entre uma cachaça e outra.

O conto versaria sobre o abandono daquele corpo numa bodega. Horrível por si só e com o enredo criativo do Rui bastava o Olavo começar. E ele começou:

“Naquele fatídico dia oito, entre a avenida principal e a prefeitura, mais precisamente no estabelecimento da Dona Luisa, foi encontrado na penumbra, um corpo.”

O Rui não gostou. Esse negócio de por dia, hora e local eram coisas da paróquia e que o Olavo tomasse jeito e inventasse outro nome para a dona do bar, porque poderia ser que a própria Dona Luisa lesse e ele não gostaria de ver o fim daquilo. E botaria a culpa no Olavo. Sem dó nem piedade.

“Fazia um lindo dia de sol, o ar quente e abafado daquela tarde primaveril, trouxe à tona um cheiro despropositado. Acharam o defunto do Romero.”

Nem teve conversa. O compadre rasgou tudo em picadinho, dizendo que de tanto calor que tinha naquelas frases ele suou só de ler. Que o outro imaginasse o resto se continuasse daquela maneira. Iriam queimar as mãos ao pegarem o papel. Mas, Romero ficou um nome bom.

“Acharam o defunto do Romero. Ninguém entendeu como é que ele foi parar lá, dentro de um bar fechado, sem móveis nem nada. Só a poeira a lhe fazer companhia.”

O Rui gostou da frase da poeira, o resto que se eliminasse por si só. O Olavo começou a bufar.

“Acharam o defunto do Romero com a poeira a lhe fazer companhia. O mistério que envolve o corpo encontrado dentro de um bar segue sem explicações.”

O compadre mandou continuar.

“O delegado busca, intrépido...”

- Intrépido? E o Rui caiu na gargalhada. Disse ao Olavo que esse início mais parecia notícia de rádio dando as explicações sobre um caso de polícia. Não tinha nada contra o delegado, mas que colocasse outras palavras já que a perspicácia do dito cujo era conhecida até na lua. O escritor que era compadre de casamento do delegado não gostou do cinismo exagerado do Rui e comprou briga na hora. Entre a discussão sobre os quesitos investigativos do delegado e os rascunhos terem sido mastigados e engolidos pelo Olavo foi meia hora.

Foram embora do bar sem terminar o jogo e sem pagar a cachaça.

Na semana seguinte, com os ânimos em ordem e a discussão esquecida, apareceu o Olavo com vários inícios para aquele conto do Rui. Era apenas uma questão de conversa para escolher qual deles ficaria melhor no contexto geral.

E o Olavo leu com todo o amor que sentia em sua alma de escritor:

- Esse é o primeiro: “O Romero foi encontrado morto, abandonado no chão de um bar, tendo a poeira como última acompanhante de sua vida.”

- O segundo: “Ninguém imaginaria que o cheiro que empesteava aquela cidade esquecida por Deus, era do Romero. A porta arrombada permitiu que os últimos resquícios de vida daquele lugar – a poeira – pudessem vislumbrar a luz do sol.”

- Esse é bom: “Romero jazia com a poeira. O bar havia sido sua última morada, o seu último adeus. As paredes foram as únicas a escutarem tão assombroso suspiro de fim de vida. Jazia sozinho, estendido no chão, putrefato.”

- Agora o último: “No bar, um corpo. Sozinho, lânguido, sem o sofrimento do amor e tampouco as saudades de outrora. Romero estava morto e foi encontrado porque seu cheiro empesteou a pequena cidade.”

Depois da leitura, Olavo fechou os olhos e suspirou como se tivesse empreendido grande esforço em mostrar seus sentimentos naquele primeiro parágrafo daquele conto secreto que o Rui lhe ditaria.

Pois o Rui, que baixava as sobrancelhas e erguia um olho de desconfiança pediu ao compadre que porra era aquela e o Olavo, incrédulo, lhe explicou tudo o que haviam combinado e que estava esperando o resto do conto, e o compadre, dando uma gargalhada interminável, lhe disse não lembrar patavina do que iria ditar e que tampouco tinha alguma ideia na cabeça para tanto e que era para ele sentar que iriam começar o jogo logo ele pagasse a conta da semana passada ao dono do bar.

* Sobre a morte do Inácio no bar da Dona Luisa, leiam: "Último pedido"

Michele CM
Enviado por Michele CM em 04/12/2013
Reeditado em 04/12/2013
Código do texto: T4598664
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