A FOLIA DOS REIS

Somente quando ouviu vozes de mulheres cada vez mais próximas é que se deu conta: ele havia entrado por engano no banheiro feminino. A igreja era pequenina tal qual a cidade que a trazia como catedral, mas os banheiros eram devidamente separados. Encurralado, adentrou-se depressa para uma das divisórias até que pudesse sair. Alto e com risos, as mulheres falavam sobre o evento da cidadela: os homens mascarados, com roupas coloridas e entoando cânticos a Santo Reis. Uma delas esboçou que sentia mais medo que qualquer outra coisa, ele riu. Mas seu espanto veio quando uma outra, com voz rancorosa, disse sentir ódio. Sem que ninguém precisasse perguntar ela foi contando que sua mãe havia abandonado ela e o pai para se ajeitar nas calças vermelhas de um desses foliões quando ela ainda estava por ser moça. Com um nó na garganta, o palhaço do banheiro ouvia a narrativa de como uma menina-moça tornara-se primeiro mãe, e depois mulher do próprio pai embriagado. Diante da tragédia de um ser feminino com toda a mocidade roubada, não era preciso vê-la para saber o quanto aquele coração emanava sombra. Uma sombra que não nasceu ali, mas fora dolorosamente implantada. Assim que as damas saíram, o bastião coloridamente vestiu-se de suas novas certezas e máscaras. Folia mesmo só para reis. Não para ele. Saiu, exteriormente alegre, fazendo sua parte na dança corpulenta. Mas trazia o peito dilacerado pela ideia tola e descabida que teve de procurar por uma suposta irmã primogênita, que há pouco soube ter por aquelas bandas, e finalmente se sentir numa família. Não era nada fácil ser um sonhador.

Marília de Dirceu
Enviado por Marília de Dirceu em 07/01/2014
Reeditado em 07/01/2014
Código do texto: T4640430
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