imagem google de um trecho do lago





MISTÉRIO NO LAGO DOS TIGRES      

 
  
                              

                                        Pode um corpo qualquer movimentar-se livre, 
                                        intocado, sobre uma corrente d'água ser
                                        bruscamente interrompido permanecendo
                                        inerte nela?
                                        Havia, pois, algo inexplicável naquela circuns-
                                        tância, assombroso até; certa magia que a ra
                                        zão não explicava.
                                        Que força desconhecida teria agido lá?






 
O município de Britânia dista pouco mais de 300 quilômetros de Goiânia. Situado na região noroeste de Goiás, no chamado Vale do Araguaia, região reconhecidamente quente propícia a criação de gado; rica em recursos hídricos, tem seu principal ponto de atração o famoso Lago dos Tigres, um dos maiores lagos naturais da América do Sul; formado pelas águas do rio Água Limpa, o lago escoa no Rio Vermelho vindo este a desaguar no grandioso Araguaia. A própria sede do município, Britânia, fica apenas a 30 quilômetros do grande rio .
O lago e os rios da região são reconhecidamente piscosos, razão da  presença ali de nossos personagens.
Corria o ano de 1988, outubro.
 
A tarde viera cinzenta, abafada e agourenta, não muito diferente  do que se via nas caras infelizes dos dois amigos pescadores: barbas por fazer, cenhos carregados e duas disposições arrasadas. Se havia algum ânimo em volta era dos dois inocentes meninos que corriam brincando por lá. Jaime se ocupava a limpar o molinete em volta da carretinha, enquanto Rubens, seu companheiro de pesca, observava aborrecido o lago, ambos angustiados pelo desfecho da espera do veículo militar que dali partira.  Naquela parte do cenário, à direita deles, avistava-se a casinha dos posseiros, e, logo abaixo, a vazante que despejava as águas represadas num declive abaixo, vindo formar pequeno córrego a correr entre o verdejante capinzal;  tal fluxo de água proporcionava no lago o sereno movimento de uma corrente em seu meio por onde se viam, a rodar, lentamente, folhas e gravetos das árvores ribeirinhas.
 
Haviam chegado por volta do almoço do dia anterior. Rubens, o mais novo deles, dirigia o carro rebocando a carreta a qual  transportava a canoa, o motor e demais petrechos da pesca. Aquela parte da região  pareceu-lhes razoável. Cuidadosa observação em volta optaram seguir por precária estradinha, embora ainda transitável, que adentrava mata seguindo rente a um modesto regato, vindo a ser bom referencial quando se pretendia, pela frente, encontrar as margens do grande lago. O palpite dera certo. Não muito além dali, o lago se expandira numa vertente larga formando um braço de grande extensão. Em sua extremidade final nascia o regato, notando-se, acima dele, uma casa modesta cercada por alta vegetação. O local ermo, pelo que se via no momento, estava só.
Decidiram acampar por ali. O morador, caso houvesse algum por lá, poderia até lhes ser útil.
Desceram as coisas necessárias a preparar ligeira refeição, seguindo-se repousante soneca. Pouco tinham a fazer considerando que a decisão do pouso já estava tomada: Jaime dormiria à noite no carro com o filho caçula, enquanto Rubens se instalaria na carretinha com o seu, dispensando com isso maior trabalho na acomodação.
A tarde viria surpreendê-los à beira do lago. Divertiam a pescar escorregadios “chorões” frente a algazarra dos meninos que fugiam dos afiados ferrões dos bagrinhos fisgados.  Em meio a isso tiveram visitas.
A canoa veio da direção da casa anteriormente mencionada trazendo dois ocupantes a lhes acenarem de longe. Corresponderam a cortezia do gesto, à medida que se preparavam para receber os visitantes. Tiraram as linhas da água e foram ao encontro dos dois.
Tratava-se do jovem morador e do pai que o visitava na ocasião. Feitas as apresentações, convidaram os dois a subirem ao acampamento; Rubens logo tratou de lhes oferecer um trago. O moço recusou; o velho pai, não. Mal entornaram o primeiro gole, o velho empurrou o copo vazio em direção da garrafa oferecendo-se a um outro, sendo prontamente atendido. O filho demonstrou desagrado ao pedido do pai mas não se manifestou.
--- Vejo que o Sr. trouxe crianças... ---- O moço recompôs-se do desagrado imposto pelo gesto oferecido do pai. 
--- ... É preciso cuidado com jacarés,  --- advertiu --- aqui tem um bitelo!... Quando ele amanhece de pá virada ataca até canoas... tomou raiva do barulho dos motores!  Frisou.

Jaime então ponderou-lhe suas cautelas justamente por causa dos meninos. Ademais, o pescador achou de mudar o rumo da conversa, fazendo uso da sua experiência na pesca, procurando referenciar-se a respeito dos peixes, iscas prediletas, se havia alguma ceva preparada, etc. etc.
O rapaz esclareceu a Jaime as perguntas a ele dirigidas censurando, em seguida,  o pai sobre a bebida. Por um momento pairou sobre todos um silêncio constrangedor vindo a ser quebrado pelo filho admoestador.
--- Vocês têm armas de fogo?
Jaime negou, omitindo a “Flaubert” automática, calibre 22, amoitada no carro. Não era prudente confiar tal informação a um estranho.
Aparentemente satisfeito com a resposta o visitante justificou a repentina despedida, atraindo, na saída, a presença de um deles em particular.
---Se o pai aparecer por aqui não dêem mais pinga a ele... costuma passar dos limites, gosta de tomar certas liberdades... não dêem trela a ele.
--- Você falou, tá falado! Jaime concordou com o rapaz.
Com a saída dos dois visitantes voltaram os quatro aos “chorões”.
Pispiava seis horas; hora, portanto, de deixar a margem do lago para limpar e fritar os peixinhos antes da noite.
Rubens tratou de armar a lona sobre a carreta, após, a cama confortável onde dormiria com o filho; quanto a Jaime, dormiria no carro com o seu. A chegada da noite propiciou-lhes observar, pela claridade longínqua das luzes, que novo acampamento se instalara bem acima na margem oposta do braço do lago.
As crianças já dormiam.  Dentro do silêncio reinante, o estridular constante dos grilos executava singular sinfonia na cabeça de Jaime, interrompida no momento por certa voz vinda do lago    inclinando-o a pensar ser gente do novo acampamento. Seria alguém de lá? Enganou-se. Era o velho pai do rapaz encaminhando-se para eles. Já bem “trolado” perguntou pelo Rubens que ainda não dera sinal de vida. Jaime então pediu ao homem que se assentasse; ele nem se mexeu. Nisso o Rubens chegou. O visitante, sem delongas mal cumprimentou seu parceiro de bebidas, perguntando, de chofre, pela garrafa de pinga, e no mesmo fôlego sugerindo aos pescadores a cessão da canoa. Alertados pela recomendação do filho, negaram-lhe amistosamente a pretensão. Tanto da pinga quanto da canoa. O homem não protestou; num gesto tão próprio dos embriagados trocou as pernas num quase tropeção e, de forma cômica, bateu continência a eles se afastando conformado rumo a casa do filho.
 
A noite transcorreu sem mais novidades. O sol ainda não saíra e Jaime se adiantara à beira do lago enxaguando as vasilhas na tarefa de buscar a água para o café da manhã que surgia. Abaixo de onde se encontrava entretido, notava-se natural caramanchão abobadado sob o qual desenvolvera vistosa e extensa rede de cebolas d”água; junto a elas, algo ancorado de tom vivamente avermelhado destacava-se em meio ao cenário verdejante das plantas, atraindo finalmente a atenção do pescador. Firmou tenazmente a visão sobre aquele cocoruto quase inteiramente imerso sem, contudo, conseguir distinguir o que quer que fosse. A principio mostrou-se curioso, todavia, sem encontrar explicações não lhe deu maior atenção.
 
Em que pese o tempo despendido haviam combinado começar a pesca de fato após o café; subiriam o lago bem acima dos acampamentos fugindo do movimento local, intuindo fisgar peixes melhores; para tanto, tudo fora planejado e as providências executadas na noite anterior.
A ansiedade dos meninos mal os deixou acabar o café. Já embarcados tomados de eufórica excitação, foram subitamente surpreendidos com a chegada do rapaz morador do local, vindo ele apressado pela margem do lago. Chegou ofegante.
 ---Meu pai!... Vocês viram o meu pai!
--- Ele teve aqui ontem à noite. Responderam ante a aproximação do moço.
--- Hoje por acaso...
--- Não!... Hoje, não!  Jaime interrompeu-o pelo meio.
A expressão e as palavras ofegantes do jovem demonstravam cansaço e preocupação; Jaime por sua vez percebendo a grande agitação do rapaz tentou lhe restabelecer a calma e um novo ânimo. Completou.
--- ...Ele deve estar dormindo por aí... ontem ele estava muito embriagado quando passou por aqui.
--- Mas eu já o procurei em toda a volta e por todo lugar! ... Perguntei até pro leiteiro que anda por toda banda e ninguém o viu!
Rubens e os meninos embarcados acenavam a que Jaime os seguisse, o que ele, deixando o rapaz de lado fez. No curto percurso rumo a canoa o  jovem o seguia desabafando sua angústia dado o sumiço do pai.
Os meninos impacientes faziam coro a navegar. Na verdade, Jaime também confessaria se encontrar assim, impaciente a sair, pois, desde a tarde anterior só haviam divertido fisgando os peixinhos da beirada. Ao dar o impulso para entrar na canoa e finalmente pudessem se divertir numa agradável pescaria, o rapaz ao lado da canoa gritou alertando-os:
--- Olha ali!... olha ali! --- correu rumo às cebolas d”água --- é o boné do meu pai!  Gritava emocionado.
Sim! O que o rapaz gritava apontando era na verdade o que Jaime não conseguira distinguir pela manhã: um boné! O movimento da água deve tê-lo posicionado mais para a superfície possibilitando o filho reconhecê-lo. De posse de comprida vara recolheu-o; funesto pressentimento o acompanhou seguida de forte emoção. Tomando o objeto do pai apertou-o com uma das mãos como a querer extrair dali algumas respostas capazes de findar os seus temidos presságios. Por um breve momento, preso a sua perplexidade, dela saiu a correr pela orla do lago desconhecendo a presença dos pescadores ao seu lado.
O fato os intrigou. O desaparecimento do velho e o aparecimento casuístico do seu boné na proximidade do acampamento soava desconfiança; somava-se, ainda, à equação, o estranho comportamento do rapaz que, ao deixar o local com tal atitude demonstrava velada acusação. Resolveram esperar por ali. Com razão. Não demorou hora o jovem apareceu acompanhado de dois outros. Estacionaram o carro na imediação do acampamento, vindo em direção a eles os dois desconhecidos; o morador após apontá-los à distância permaneceu no carro. Amigavelmente um deles pediu a que um dos pescadores os acompanhasse; ante tal condição, Jaime pediu a Rubens que ficasse com os meninos  prontificando-se ao convite. A consciência tranqüila o animava. Saíram, pois, no carro que os trouxeram.
Voltaram bom trecho pela estrada que vieram no dia anterior até tomarem um  desvio entrando pela mata densa onde, pouco depois, avistaram isolado rancho.
Um homem descalço, de farta barba branca veio ao encontro do grupo recebendo-o gentilmente; num rasgo de deferência convidou-os a entrar. No interior do rancho ofereceram a Jaime uma cadeira junto a mesa central do cômodo. Logo, o ancião se apresentou desculpando-se pelo interrogatório que viria a seguir. Sem meias palavras esclareceu-o  estarem em terras devolutas conflagradas por fazendeiros e posseiros, motivo de pistoleiros a mando dos “graúdos” constantemente assassinarem gente sua; daí a razão dos estranhos carecerem, nessa circunstância, serem identificados. Esclarecida finalmente a  situação o velhote desculpou-se novamente pela importunação, ordenando aos outros que levassem Jaime de volta.
Em seu retorno encontrou o companheiro pescador preocupado com a demora, vindo esclarecê-lo do ocorrido na mata. Por sua vez indagou-o surpreso das pessoas estranhas a confabularem a beira do lago. Rubens, então, o explicou em breves palavras, --- enquanto o arrastava rumo a margem --- que se tratavam de parentes do homem desaparecido,  chegados ali recentemente.
 
Em meio a conversa, preocupados com o desenrolar da situação, observavam a aproximação da canoa que se aportava junto a  eles. Eram pescadores do novo acampamento acima que se mostravam também preocupados com o sumiço do homem; segundo afirmaram, o infeliz estivera  naquela noite com eles até altas horas, ocasião que partira altamente embriagado, embarcando a sós na canoa que viera.
--- Surrupiou-nos de quebra  uma garrafa de pinga – confidenciou um deles.
--- A novidade é que encontraram o barco perto da vazante com os chinelos dele dentro, mas o homem, nada! --- observou o outro.
--- Bom será se não for coisa do jacarezão! Completou Rubens.

 Em contrapartida Jaime colocou-os a par dos conflitos de terras no local, quando todos concordaram  que dali poderia surgir um desfecho imprevisível.
O passar do tempo veio a confirmar esses temores.
 
Três policiais chegaram; com eles outros três nativos da região. Após se apresentarem como policiais da cidade vizinha, um deles, dizendo-se o superior, fez breve explanação da situação ali vivida, intimando aqueles que se encontravam na imediação do local, na noite anterior, que dali não se ausentassem. Ouvidas as recomendações todos se afastaram pondo-se a observar os nativos que, apossados de cordas e ganchos, puseram-se a vasculhar parte do lago em busca de um provável corpo.
Grande parte da tarde aqueles nativos, usando canoas e à margem do lago, atiraram seus ganchos presos às cordas; apenas uma parte do lago, ---esclareceram ---, acima do acampamento fora moderadamente vasculhada, pois, segundo um deles, presumia-se inúmeras árvores submersas nas quais os ganchos se prendiam.
Demandava três horas, a esposa do desaparecido, ante o fracasso nas buscas e os incessantes ataques dos insetos, irrompeu a praguejar o infeliz marido pelos maus tratos a ela dados; quanto aos demais familiares, impacientes, cobravam uma atitude do militar graduado. O cansaço e a descrença já eram visíveis nos movimentos dos vasculhadores nativos. O lago, na provável extensão da rota tomada pelo desaparecido, fora intensamente revirado exceto o trecho reconhecido  das presumidas árvores submersas. Mas se ele, na privação de seus sentidos normais houvesse tomado o rumo inverso de sua casa, remando em direção do centro do lago? O homem não estava inteiramente embriagado? O seu provável deslocamento lago acima, dado a sua desorientação, também poderia reconduzir de volta a canoa solitária, tal o ocorrido, trazendo-a para o final do braço do lago, considerando que a corrente, mesmo lenta, se encarregaria disso. Nesse caso o cadáver estaria num local indefinido na grande extensão do lago, impossibilitando a localização no momento. Acharam por bem não levar esta possibilidade em conta.
Tal realidade indicava ao militar graduado, premido sobretudo pelo clamor dos parentes, a tomar posição. Reuniu-se, pois, com os auxiliares a sós; ao término, reclamaram a presença do filho explicando-lhe as providências tomadas. Na sequência um dos soldados entrou no carro oficial e partiu.
--- O que podia ser feito, foi feito... agora vamos esperar que dê certo.
O pouco que os dois amigos vieram a saber é que se tratava de uma simpatia. Não receberam maiores detalhes. A indefinição do caso lhes afligia; e se o homem não fosse encontrado? Até quando ficaríam retidos ali com as crianças? Jaime procurou afugentar esses pensamentos enquanto limpava o molinete rente a carretinha; quanto a Rubens, absorto, observava aborrecido  a quietude no lago, plenamente sereno ante aquela tarde cinzenta.
 As crianças continuavam a correr em volta.
Pois foi em meio a tanto aborrecimento, pragas e arrependimento que o carro finalmente voltou da cidade despertando atenção dos presentes.
Tudo levava a crer que o desaparecido devia ter tomado a canoa no acampamento acima e embarcado rumo a casa do filho logo abaixo. Era o provável. Com tal dedução dois daqueles nativos, sob ordens do militar graduado, embarcaram seguindo em direção do novo acampamento levando consigo o material comprado recentemente na cidade.
Foi o que fizeram. Aportaram cuidadosos a canoa lago acima 
se acertando ser ali o provável ponto; visualizaram abaixo onde o homem supostamente estivera por último e, manobrando a embarcação no meio do braço do lago depuseram cuidadosamente o  prato esmaltado novo, em cujo centro fixaram uma vela acesa. Remando com redobrado cuidado se afastaram observando os  movimentos das pequenas ondas surgidas sacudirem levemente o prato que seguia o lento curso das águas.
O tempo quente, abafado, não permitia sequer leve brisa a importunar a frágil chama a arder imperturbável presa à vela, e esta, ao prato.
Os olhos e a ansiedade de todos estavam nele. Seu movimento no entanto era de tal lentidão que abatia expectativas, levando muitos a desistirem de seguir o seu vagaroso curso.  Ao cabo de  meia hora após do arranjo ser deixado sobre a água, a minoria apenas dos presentes no acampamento abaixo viviam a ansiedade de vê-lo movimentando-se lento, deslizando praticamente em linha reta, pouco desviando do curso central o qual fora colocado.
  
Finalmente os olhos pacientes, crédulos, foram agraciados a contemplarem aquele momento de fascinação que, para a maioria deles, não puderam perceber o momento exato em que o inexplicável ocorreu, tamanha a lentidão e a distância. No preciso local onde os homens disseram ser arriscado lançar os ganchos, o prato miraculosamente parou na superfície!
Parou e de lá não se moveu ante a crescente admiração de todos.
O prato que serenamente deslizava com extrema lentidão trazendo sua esperançosa vela a arder imperturbável se aquietou de vez; permanecia sobre o local apontado pelos exploradores do lago onde as pressupostas árvores submersas jaziam. Dali, apenas se observava os detritos descerem morosos sobre a corrente d’água, deslizando em volta do prato imóvel.
Durou segundos até que um dos nativos gritou:
--- Ele está ali!
Muitos persignaram-se contritos.
--- E agora? Perguntou o filho, apreensivo.
--- Temos de esperar amanhã... logo vai anoitecer; amanhã avisaremos os Bombeiros... um mergulhador vai ter de entrar aí.
Esclareceu um dos nativos, ante o silêncio do militar graduado.
A chegada da noite denunciava claramente a diminuta chama ainda a queimar naquele local, impedida de encaminhar-se até a vazante do lago.   
O nativo teria razão em afirmar com tal segurança? Quanto aos dois pescadores sobravam-lhes dúvidas e preocupações. Jaime repassava mentalmente os fiascos da pescaria e a exposição dos meninos dali em diante caso o desaparecido não fosse encontrado. Até quando seriam obrigados a permanecerem reféns daquela situação? E se o corpo fosse encontrado com algum ferimento qual seria o desdobramento da questão? O fato do boné da vítima ter sido encontrado junto do acampamento não os tornava suspeitos principais da agressão?
Jaime finalmente acomodou-se no banco do carro com essas dúvidas na cabeça; por mais que tentasse o sono lhe era fugidio e a noite passava sombria, sem alento a que ele pudesse descontrair-se. Contudo, o cansaço venceu as apreensões e ele adormeceu.
Afora os ruídos naturais, na beira do lago predominava tranqüilo silêncio. Os parentes do desaparecido, em maior número, haviam se retirado para a casa do filho, e os militares, juntamente aos nativos, se acomodaram na imediação do acampamento.
Tal quietude no entanto veio a ser quebrada no alvorecer do dia. Em rápidas passadas junto ao carro de Jaime, alguém o tirou da sonolência anunciando em alta voz para todos: --- Ele boiou!... Ele boiou!
Jaime nem calçou as botinas. Assim que pode saltou do veículo e correu lago acima até altura donde o prato estacionara. Vivamente impressionado esforçava-se para discernir no local o corpo anunciado. De lá, espessa cortina de névoa se elevava do plano do lago, formada pela evaporação natural de suas águas, vindo naturalmente dificultar a visão de coisas na superfície. O que ele via, no entanto, era algo semelhante a um toco de madeira.  Por um bom tempo Jaime se esforçou para identificar melhor o que via, sem êxito, porém. Resolveu voltar encontrando Rubens junto aos militares. Dois dos nativos já haviam remado para resgatar o corpo imóvel que, pelo visto, boiara a pouco no local.
A chegada do resgate coincidiu com a chegada dos parentes se aglomerando na margem abaixo. O cadáver, de braços estendidos para frente, insinuava querer abraçar algo, ensejando aos dois nativos passar uma corda à sua volta rebocando o infeliz afogado ao lado da embarcação. À primeira vista, parecia certa estátua de gesso encardida pelo barro da profundeza do lago. Nada do que viram e conheceram estava ali --- pensou Jaime a observar a cena --- a estatura mediana e o corpo enxuto do homem tomaram feições bem distintas com o triste acidente e a posição enrijecida que se encontrava, no momento em que as pernas mantinham-se fortemente dobradas, sugeria o seu encolhimento, e a face, em particular, sugeria o contrário: deformada pelo excessivo inchaço deixava-o distante da figura que conheceram.
Um cobertor foi solicitado ao filho para retirar o corpo da água, tendo este se recusado a cumprir a obrigação filial. Certamente já mal influenciado pela mágoa da mãe. Ante o constrangimento gerado, notadamente na expressão das pessoas estranhas, Rubens ofereceu um da própria tralha.
A proximidade do corpo agora, depositado no capim, permitia a Jaime ver claramente que o infeliz afogado estava inteiramente intacto e, ao menos aparentemente nenhum sinal de agressão ele sofrera. O pesadelo acabou. Disse a si baixinho encaminhando-se a Rubens.
--- Está pronto? Indagou ao parceiro que se mantinha afastado junto aos meninos.
--- Desde ontem!  Respondeu sem ocultar o desgosto e a ânsia de retornar.
O militar os liberou desculpando-se pelas imposições feitas, justificando-se tratar-se de procedimentos exigidos pelo caso, e que, diante dos fatos recentes estariam liberados para partir.
Despediram-se e partiram.
O lugar infelizmente não deixava boa impressão a nenhum dos dois amigos, o que não impedia Rubens de dormir recostado no banco traseiro do veículo; todavia, Jaime, na direção do carro, repassava atento o destino do prato. Na primeira oportunidade o nevoeiro não permitia distinguir objeto tão pequeno por lá; teria ele rodado quando da extinção da vela? Ou do aparecimento do corpo boiado? Ou ainda: estaria ele de posse dos canoeiros?  Ele não sabia.
Uma certeza, porém, ele carregava: naquele preciso momento em que o prato, livre de qualquer ação em seu curso lago abaixo, desafiou inerte o seu contínuo movimento, Jaime acreditava piamente ter ocorrido ali um milagre, à medida que o natural transpunha ao sobrenatural, e os limites do visível se encontraram aos do inquietante invisível.
As divagações chegaram ao fim. Britânia estava à frente, carecendo acordar Rubens e por as idéias no lugar para voltar a Goiânia.
 
 
moura vieira
Enviado por moura vieira em 10/01/2014
Reeditado em 16/06/2021
Código do texto: T4644657
Classificação de conteúdo: seguro
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