O Analista

 
- Queria desaparecer por uns tempos.
Foi assim que eu comecei a fala.
Uma frase e depois o silêncio.
Engoli a bola que se formava na garganta e esperei que ele entendesse o que eu tentava resumir.
Nada. Nenhuma som vindo dele.
Baixei meu olhos e vi minhas unhas brancas e as cutículas arrebitadas. Nunca tinha conseguido ter unhas bem cuidadas.
Ele continuava parado. Mudo.
Observei a mão suspensa que segurava o lápis sobre o papel. Nenhum movimento.
Os olhos azuis e pequenos também não se moviam. Estavam fixos em mim, esperando a continuidade daquela frase que não causou o efeito que eu esperava mas que continha o turbilhão de emoções que eu sentia.
Angústia, raiva, frustração, arrependimento, culpa, ódio, ressentimento, solidão e obviamente, fraqueza.
Era por elas que eu queria desaparecer.
Sumir por uns tempos, descansar em alguma nuvem e esquecer das tentativas e falas de dias turbulentos.
Ele se mexeu na cadeira e tive um lampejo de esperança de que falasse alguma coisa, mas nem um som saiu da boca dele.
Permanecemos em silêncio. Ele, aguardando alguma ação. Eu, aguardando que soltasse alguma fórmula que me tirasse daquele inferno emocional.
Então vi a caixa de lenços. Recém-aberta, com duas pontas de um papel muito branco aparecendo por entre o rasgo no papelão. Imediatamente compreendi.
Aquele era o lugar onde as pessoas vinham confessar que queriam desaparecer.
Eu não era a única.
Não era especial.
Ele devia ouvir a mesma fala o dia inteiro, o ano todo.
Pessoas de todas as idades, sexo, aparência, classes, crenças, sentavam ali, olhavam aqueles olhos miúdos e descreviam os demônios que as atormentavam.
Traumas, medo, neuroses, problemas de família, de dinheiro, sexuais. Uma miscelânea de sentimentos negativos em busca de solução e normalidade e ele era o depositário fiel de todas as esperanças. Uma espécie de salvador, de médico de almas ou de herói que ameniza sofrimento.
Ele pareceu notar o que eu estava pensando porque momentaneamente fitou o vazio. Coisa rápida, para logo voltar a fixar o olhar em mim em busca de novas pistas.
Eu já não queria desaparecer. A sensação de angústia havia mudado com as últimas reflexões. De um poço de desespero eu passava a uma espécie de observadora.
Na minha frente havia alguém que não estava isento de emoções, mas que colocava dinheiro no bolso ouvindo as mazelas alheias e aplicando técnicas para mostrar formas de alívio para conflitos que ele também sentia.
Fiquei um pouco constrangida.
Eu ficava ali por uma hora. Despejava toda a minha doença emocional, esperava um remédio para a alma e saía com meu saco de lixo psicológico vazio, pronto para a nova sessão na semana seguinte.
Ele não. Ficava por uma vida. Até aposentar, até envelhecer, até enlouquecer com a loucura dos outros, inclusive a minha.
Minha angústia virava tristeza.
Um sentimento incômodo misturado com curiosidade. Queria saber se ele não se afetava, se dormia à noite, se brincava com os filhos ou se olhava para a esposa isento de todas as neuras típicas da frustração sexual.
Ele cruzou as pernas e olhou o relógio.
Seis e quarenta e cinco. Mais quinze minutos e então ele e eu estaríamos livres de nós.
Esbocei um sorriso e disse que estava melhor.
Ele não disse nada.
Perguntei se a sessão havia aumentado e ele confirmou. Tirei duas notas da bolsa e ele as recebeu com a frieza profissional de sempre.
Saí da sala sem vontade de desaparecer.
Na recepção, uma mulher de meia idade e olhos vermelhos, aguardava. Próxima sessão.
A mesa sob o pergolado naquela noite de verão, ganhou meus pensamentos. Duas cervejas geladas e um sorriso enorme acenavam para mim.
A vida realmente é muito engraçada. Muda de uma hora para outra, assim sem explicação.
Há uma hora eu queria desaparecer, agora, flutuava em direção aos olhos sorridentes.
Quando o abraço me recebeu, confesso que senti uma certa pena do analista.



Foto: Edeni Mendes da Rocha
 
Edeni Mendes da Rocha
Enviado por Edeni Mendes da Rocha em 22/01/2014
Reeditado em 22/01/2014
Código do texto: T4660015
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.