O Escurraço

O Escurraço

Aconteceu lá pelas bandas de Maracangalha, no massapé do Recôncavo baiano,onde descortinavam imensos canaviais de rara beleza.

O enterro feito na roça tem lá suas próprias peculiaridades: primeiro por ser regado a muita pinga durante toda noite, com muitas conversas e estórias que em certos aspectos assustavam os mais incautos. Mulas Sem Cabeça, Mulher da Trouxa, Camunderê Gunguê, atiçavam a imaginação dos presentes que, aliados ao breu da noite, lhes impingiam o medo. Assim todos passavam a noite ouvindo o choro das carpideiras(mulheres contratadas para chorar), mas na verdade faziam ouvidos moucos ao choro delas. Em síntese, estavam mais para a diversão que para a comiseração com os parentes do morto. Tinha ainda as escapadelas furtivas e silenciosas dos casais de namorados, que se dirigiam ao fundo do quintal em direção aos pés das bananeiras, onde ocorriam as libidinagens.

O galo canta encimado na cancela anunciando a barra do dia que vem chegando; lá no horizonte o sol preguiçosamente se levantando. Os rostos apresentam-se ausentes, cansados pela noitada intensa regada em muita água dura (cachaça). Alguns vão rapidamente se levantando, pois lá pelas dez da manhã devem voltar para o enterro.

Zé da Galinha, o falecido, sempre teve uma vida descansada, vez que, Dona Anta Baleada na labuta diária de lavar roupa de ganho para o sustento da casa, deixava-o sempre na vida mansa de colchão e fronha. O Zé achava que o homem não foi feito pra trabalhar.Embasava seu raciocínio no fato dos índios viverem na rede,da caça e da pesca. Contrapunha com esse argumento quem ousasse contesta-lo. Todos, no entanto, viram que foi a marvada pinga que o matou, já que bebia diariamente.

Começa o enterro do Zé na hora marcada. A multidão se arrasta ao som do choro das carpideiras. A viúva vai sendo consolada pelo compadre Burro Manso que maliciosamente, passa-lhe a mão em torno da cintura, já sentindo as carnes duras na palma da mão, razão das suas elucubrações noturnas. Finalmente o corpo e as flores descem ao repouso final.

Agora o enterro acabou. Descem todos em passos apressados retornando á casa do Zé da Galinha para efetuar o escurraço. Zé Furado vai pensando com seus botões:

-Agora o safado me paga!

Retira de trás das moitas de capim elefante, um cipó caboclo comprido e envernizado que tinha escondido cuidadosamente na hora do enterro, pois se lembrara que foi o Zé da Galinha que lhe colocara um apelido tão jocoso. Os demais da estranha comitiva vão pegando pelo caminho pedaços de madeiras, galhos de mato seco, cipós e tudo que fossem encontrando ao alcance das mãos e que servissem pra dar uma boa surra.

Bode Riscão, mulato alto e forte como um touro, segue a frente do cortejo com um porrete roliço de madeira com cinco palmos de comprimento, onde tinha escrito em grandes letras vermelhas -Estatuto da Criança e do Adolescente-. Era nisto que ele acreditava, e não nas modernagens dos pedagogos e psicólogo de academia, tanto quanto os ambientalistas do décimo andar que vivem aboletados em seus escritórios, sem nunca terem andado descalços no mato e os pés nus no asfalto.

Todos querendo chegar primeiro na casa do finado. Finalmente adentram a casa do pobre coitado. Aí começam a madeirada (pancadaria) segura no lombo do espírito do Zé da Galinha. Primeiro batem embaixo da cama; em cima do guarda roupa; abrem as gavetas; aspergem água benta por toda casa. Batem atrás das portas na maior algazarra e esculhambação para espantar o espírito do morto,mesmo porque ele não pode virar encosto.

As portas e janelas fechadas ferem a tradição, pois tem que haver uma saída para o espírito do defunto, mas Zequinha Água Dura lembrando-se da quebrança dos seus trocados pelo Zé das Galinhas que não lhe pagou uma aposta ganha, tinha fechado as janelas e portas por pura maldade. O espírito apanhando mais que mala velha pra largar poeira, atônito não conseguia se situar, mesmo porque, estando ainda recém desencarnado, não tinha a menor idéia do lugar que se encontrava. Assim fica correndo de um lado para o outro

tentando abrir o gás ( fugir) e sair debaixo de tanta pancadaria.

Continuavam todos a deitar a madeira no Zé, quando nesse momento Dona Anta Baleada por sua extrema compaixão,piedosamente abre-lhe a porta oferecendo assim uma oportunidade de fuga, dando assim por concluída a “limpeza da casa”.

-Vai filho da puta! Tens mais que se lenhar nos quintos dos infernos.

– Grita raivosamente Zequinha Água dura com o braço cansado, mas sentindo-se recompensado pela perda dos seus parcos trocados enquanto vê um redemoinho de ar quente se afastando a toda velocidade se perdendo no horizonte.

Era o Zé da Galinha.

Poeta Dos Ermos