Na aba do meu chapéu

Conto inspirado na sintaxe de mestre Dias Gomes

Madame Zuleide! – grita uma delas.

Fale mais baixo, querida! Não precisa anunciar pra Deus e o mundo que eu estou aqui. Pessoas com it, como eu, dispensam alarde. – explica a dama.

Mas faz tanto tempo que...

Cale-se! – Madame Zuleide interrompe – Você já me viu aqui, agora feche essa matraca, até porque o espetáculo está por começar.

Eu tenho tantos fuxicos pra contá-la. – insiste a abusada.

Guarde pra você!

São tão fortes!... Apimentados diria.

Querida, será que você não me ouviu dizer pra calar-se! Eu sou mulher de classe. Não pega bem ficar de fuxico com uma mulher como você, do povo!

Respeitável público! – anuncia com sua voz possante o locutor, interrompendo a conversa das duas.

A senhora precisa me ouvir – continua a dama, irredutível.

Mas será possível?! Se você não ficar quieta, eu vou chamar os seguranças! – ameaça a Madame.

Pois a senhora, Madame Zuleide, cometerá uma grande injustiça! Só estou querendo ser sua amiga.

A platéia, de súbito, dá gargalhadas.

O que foi que aconteceu? – pergunta Madame.

Isso não nos importa.

Como não? Eu paguei pra assistir ao espetáculo e perdi, pelo visto, uma das melhores cenas, por causa dessa sua insistência em me contar fuxicos que não me interessam. – reclama Zuleide.

A senhora é que pensa. Se me ouvisse apenas por um momento... – tenta ganhá-la com sua faceta humilde.

Já que você tanto insiste, depois do espetáculo me conte.

Comemora a outra dama, menos eminente e fausta que Madame Zuleide.

Mas só depois que acabar. Agora, por favor, cale-se para assistirmos à peça em paz!

Ali perto, uma outra dama envergando um vestido negro e um chapéu profusamente ornado, parecendo um pavão com suas plumas em riste, observa, aliás, contempla com certa inveja a elegância de Madame Zuleide.

Eu não posso acreditar numa coisa dessas! Uma pobretona que se casou com um fazendeiro rico retorna pra cá se achando a dona do pedaço! – fala consigo mesma – Mas ela me paga. E se está achando que vai me tirar do trono, está muito enganada!

Um pouco mais atrás da fofoqueira solitária, duas mulheres conversam, como se no palco os atores não davam o melhor de si.

Aquela ali, menina, só pode ser louca! Não parou de falar desde que chegou e, ainda por cima, falando sozinha. – observa a nova na cidade.

Ela sempre foi assim, achando-se melhor que qualquer uma de nós, por isso que vive isolada. Ainda mais agora que o marido virou prefeito. Tem nojo até dele!

As duas gargalham displicentemente, a contragosto de algumas poucas senhoras de educação européia, refinadíssimas.

No palco, as luzes se acendem tão forte e bruscamente que chegam a clarear até a platéia. A “primeira-dama-fofoqueira-solitária” aproveita para ver, mais detalhadamente, o traje de Madame Zuleide.

Pelo menos bom gosto essa sirigaita tem, mas cabelos longos?! Onde foi que ela arrumou isso? – confabula a primeira-dama – O povo todo sabe que ela perdeu os cabelos num incêndio que teve na cozinha da casa dela... – e a dama abre um sorriso maquiavélico, que só Deus sabe o provocador de tal façanha!

Depois de horas que pareciam não ter fim, a platéia em pé aplaude os atores, o suficiente para acordar algumas senhoras que cochilavam durante a apresentação fatigosa.

Ande, vamos, Madame Zuleide! – a impertinente súdita da Madame mal agüentava esperar tanto.

Acalme-se! Desse jeito você acaba arrancando o meu braço!

É agora que nós nos acertamos, Madame Zuleide! – sussurra a primeira-dama, à parte.

A noite estava perfeita. Não parecia ser num trópico como o Brasil. Parecia ser Paris numa primavera inspiradora.

A primeira-dama procura algo. Ao mesmo tempo, Madame Zuleide vem descendo as escadarias do teatro, sendo quase que puxada pela delatora a tiracolo.

Ei, você! Ei, pivete!

A senhora me chamou, por acaso? – perguntava meio incrédulo o menino que andava por ali, sem norte.

Estás vendo mais algum pivete por aqui? Tenho um bico para você.

Bico? Olhe pro meu tamanho?

Idiota! Eu não estou falando desse bico. Estou falando de... de... – a primeira-dama procura uma palavra mais pertinente à sua tramóia – Ah, não interessa o que seja! Eu sou primeira-dama dessa cidade e você vai ter de me obedecer. Depois eu te recompenso.

Tudo bem. A senhora pode falar que eu faço.

Vamos ali para o canto.

Num outro canto, estão Madame Zuleide e sua “amiga”. Algumas senhoras se aproximam de Madame para desejar-lhe as boas-vindas.

Eu não acredito que você me chamou aqui pra dizer isso!

Oi, Madame Zuleide! – cumprimenta uma gorda, visivelmente desconfortável num vestido impróprio àquela forma corpórea.

A chegada desta e de outras senhoras soou como alívio frente à fofoqueira, que estava prestes a ouvir cobras e lagartos da boca de Madame, enraivecida com as asneiras a ela contada.

Mas eu não posso fazer isso, dona! – manifesta o menino, inocente como toda criança naturalmente deve ou deveria ser.

Que não pode! Desde quando pobre do seu tipo tem escrúpulos? Vá duma vez, vá. Antes que a outra suma daqui e entre num cabaré desses que tem aos montes pela cidade.

E indefeso o menino parte, como se fosse soldado marchando em ordem de batalha. Furtivamente, a primeira-dama supervisiona a ação do pupilo.

Madame Zuleide está cercada de senhoras, curiosas por saber como foi sua viagem ao extremo norte da Europa. A retórica e a maneira pomposa de Madame falar, não só encantava a platéia improvisada, como também provocava fantasias.

E aí, Madame, a senhora conversou com algum viquingue?

E como eles são?

Madame gargalhava altivamente risos pela ignorância e inocência das damas daquela cidadezinha perdida nos quintos dos...

Senhoras, hoje não existem mais viquingues! Só fazem parte mesmo é da História! – tenta a Madame explicar com elegância às damas aparentemente cultas.

De repente, a arrogância aceitável de Madame Zuleide cai por terra. A sensação de todas é de que um furacão passara ali atingindo apenas a Madame, como se ela tivesse cometido um imperdoável pecado e que aquilo fosse castigo divino.

Cadê o meu chapéu? Cadê o meu cabelo? – gritava Madame, deixando a cidade inteira em polvorosa, cavalos relinchando, galos cantando antes da meia-noite, árvores fremindo...

Pela janela da sua sala, a primeira-dama assistia ao reboliço, com ar sádico, satisfeita com o mau bocado da sua arquiinimiga.

Respire fundo, Madame. É bom para acalmar.

Tome essa água, Madame.

Água não resolve nada. Madame precisa é de um bom chá de folhas de laranjeira.

Chega! – vocifera Madame num tom em que deixou todo mundo ensurdecido. – Eu só quero meu chapéu e meu cabelo... Oh, meu chapéu francês... – Madame desaba, inconsolável.

A casa para onde Madame Zuleide fora levada regurgitava de espectadores. Há tempos não acontecia um fato tão importante na cidade. O último foi quando a mesma primeira-dama pegara no flagra o seu marido e a Madame promovendo a mais justa das simbioses!

Tá aqui, senhora. Conforme foi pedido.

Hum, você é muito prestativo. Agora me dê esse chapéu! – ordena autoritariamente a primeira-dama.

Primeiro a recompensa. – diz o menino, mostrando que não é tão inocente.

Amanhã sem falta.

Eu quero agora, senão eu conto pra cidade toda que foi a senhora quem mandou roubar o chapéu e a peruca da Madame Zuleide.

Você não é nem louco de fazer isso, seu pivete!... Quer saber? Pegue esse chapéu e leve embora.

Posso saber o que está acontecendo aqui?! – aquela voz gutural ecoou como trovão.

Os olhares da primeira-dama e do menino voltaram-se involuntariamente para a porta da sala, de onde vinha chegando o prefeito.

Hein, minha esposa? O que está acontecendo? Quem é essa criatura aí? – inquiria com toda a sua autoridade o prefeito.

Não é nada de mais. Foi só um mal entendido. – a primeira-dama tentava consertar a situação.

E que mal entendido foi esse?! – os rodeios da esposa já irritavam o prefeito.

Eu conto! – o ato intrépido do menino deixou o prefeito surpreso e a primeira-dama mordendo-se de raiva.

Ladra! Ladra! Ladra! – lá fora e em coro, as vozes iam ganhando a atmosfera silenciosa e plácida da cidadezinha. A esposa do prefeito parecia prever o que lhe esperava (dessa vez, pelo menos, as aparências não estavam enganando!).

Vamos organizar essa baderna, senão eu chamo a Guarda Nacional! – no “púlpito” de sua casa, o prefeito tentava vencer a fúria popular.

Guarda Nacional?!... Isso é uma ofensa a nós, todas senhoras de respeito!... – bradavam, melindrosas, as senhoras da mais ilibada reputação.

Então, escutem-me!

Quem tem de ouvir é o senhor! – contra-atacou, emergindo do meio daquela massa feminina, a Madame das madames.

Madame Zuleide, a senhora por aqui?! - e o prefeito engoliu a seco toda a sua arrogância.

E não precisa ficar desse jeito, seu prefeito, porque entre mim e o senhor não existe mais nada! O assunto agora é o outro. A sua esposa, primeira-dama desta cidade, mandou um menino ingênuo surrupiar o meu chapéu francês, conforme contou esse senhor! – apontava a Madame para o homenzinho, muito parecido com Jeca Tatu, de Lobato.

Mentira, meu esposo! Isso é uma farsa! – dizia a primeira-dama.

Ou a senhora devolve o meu chapéu e a minha peruca, ou subo aí nessa varanda e deformo a sua cara à tapa! – ameaçava energicamente a Madame despida de qualquer vaidade e pudor.

Senhoras, por favor, vamos manter a ordem e o respeito. Não adianta ofender uma as outras. Desse jeito não se chega a resultado algum.

Pois bem, eu devolvo o chapéu.

A atitude inesperada da primeira-dama caiu como chuva em dia ensolarado sobre as senhoras amotinadas.

Quer dizer que você roubou o chapéu de Madame Zuleide, minha esposa?! É isso mesmo?

Foi só uma brincadeira! – pode não ser a definição mais apropriada, porém foi assim que a esposa do prefeito achou por bem definir – Isso, uma brincadeira!

Brincadeira?! Que eufemismo barato! A senhora mandou, com todas as letras, surrupiar sim o meu chapéu, porque ele é chique, é francês. Coisa que a senhora só vê em revista. Sua invejosa! – decretou o renome da primeira-dama a Madame.

Pelo amor de Deus, – já suplicava aos céus o prefeito, como um eremita no deserto – vamos acabar com isso logo! Minha esposa, devolva esse chapéu duma vez.

Está com o pivete, que... – procurava ao redor pelo menino – que... O pivete sumiu! – apregoou, assim, a primeira-dama.

Sumiu? – perguntava o prefeito.

Sumiu? Pois trate de comprar outro igualzinho, prefeito! – ordenou Madame – Eu nem bem havia ganhado aquele do senhor e já...

Enquanto algumas lágrimas escorriam pelo rosto de Madame Zuleide, a primeira-dama transfigurava-se num ódio visceral.

Então vocês voltaram a se encontrar?! Dois safados... – e a primeira-(talvez não mais)-dama partiu às tapas para cima do prefeito.

O reboliço insólito naquela cidadezinha perdida no mundo estava completo!

Willian dos Reis
Enviado por Willian dos Reis em 06/05/2007
Reeditado em 10/06/2007
Código do texto: T477256