POÇÃO MÀGICA

O Januário enchia o largo com a sua figura avantajada imponente e rubicunda. O seu farto e farfalhudo bigode à medida da sua dimensão, honrava-lhe a face tisnada do sol que queima os lavradores nas safras da época estival.

Além de lavrador no casal dos Monteiros, o Januário era também procurador da família há um ror de anos perdida no Brasil. Se de dono do casal não tinha título, tinha a procuração da confiança, sem papel timbrado nem selado, mas seguro da palavra do Monteiro, que ficou de voltar em meia dúzia de anos, e já lá vão mais de três dezenas sem que arribe a Goulão um carro de praça e desembarque dele de panamá e terno branco um brasileiro, patrício, rico e Monteiro de origem. Mas não; o sertão engoliu o Monteiro certamente, ou a favela cercou o botequim do português e o cativou com cachaça, mulata e feitiço. Quem sabe ao certo? Nem interessa!

Como as letras ao Januário nada diziam, todos os seus registos eram mentais, e portanto pessoais e intransmissíveis, especialmente para além mar, de onde aliás já não vinham novas do Monteiro há mais de vinte anos. Descanca em paz que é o mais certo. Agora já não dava geito sair da tumba ou do samba, cruzar o mar, vir abalar a solidez deste patrício caseiro e mergulhar na insípida, escura, e mesquinha vida de Goulão, como a iriam ver agora os seus olhos brasileiros.

Entretanto a vida decorria sem Monteiros e sem os mais que foram fazer fortuna no Brasil. Mas como fazer isso é lotaria, ficaram só a fazer o Brasil ou os Brasis que são diversos e é obra interminável. Ainda não vieram. Aqueles que noutros tempos foram para o Oriente como Camões, voltaram, mas os do Brasil “nacionalizaram-se”. Só comendadores de fortuna feita bem ou mal , vieram exibir o título e o dinheiro, erguer obra benemérita no seu ninho antigo e partir de novo para a nova pátria amada.

Em Goulão ignorava-se e muito bem o mundo. Aqui o mundo está feito há muitos anos. É sempre igual, dir-se-ia monótono, cinzento e mesquinho. Mas só para quem conheceu urbes cosmopolitas, frenéticas de vidas e vistas espantosas, as mais díspares, e de quotidianas novidades, poderá classificar de desterrados quem vive nesta aldeia cristalizada, mas na quase perfeita forma da felicidade.

O Januário era feliz, sem ir para o Brasil, mas os da sua geração partiram num surto de febre emigratória que grassou na sua juventude, atreita a sonhar com Shangri-La, quando por vezes vivia nele sem saber. O Januário vivia aí.

Com o seu chapéu às três pancadas, o seu estatuto e tamanho, era um marco na praça, além do pelourinho, ambos sólidos embora o pelourinho se apresentasse mais corrído e desgastado do que o Januário. A idade conta, mesmo a idade da pedra.

No entanto de há algum tempo a esta parte, este lavrador forte como os seus bois apresentava alguns sinais de alquebro. Vinha mirrando no volume, inclinando a estatura, mortiçando a voz de baixo e cerrando ligeiramente palpebras sem que fossem horas de sesta; declinando enfim todos os traços sublinhantes de saúde e vigor.

O médico na sua visita semanal ao lugar estranhou a mortiça praça, sem o vozeirão do Januário, que produzia eco no arrabalde e deixava as subalternas figuras mornas desta praça entregues a sua natural condição de mandriões, estendendo o ócio nas escadas do fontenário e coçando as espáduas em folga no já poído pelourinho, por falta desse capitão de terra e paz neste convés de pedra agora à deriva.

Consultado o paciente foi-lhe prescrita medicação necessária ao seu regresso à vitalidade perdida. Oito dias decorridos e eis que o doente já se apresentava de corpo e alma remoçados.

O espírito nunca lhe sobrou em cultura além da agrícola, e as letras sempre se lhe confundiram na mente e nos lábios mas em esforço mental esgravatava na memória para achar o nome do sagrado remédio que o desencaminhou do leito quente e até talvez de um outro frio.

-Senhor Doutor aquele rumédio que me arreceitou foi milagroso! O Senhor Doutor bem adivinhou o meu mal! Perdoe Vosselência, mas ainda pensei no bruxo da Ergueira, que alguns dizem que é tão entendido como os Doutores, e é barateiro, mas graças a Deus posso pagar. Ainda não sou quem era, o meu boi malhado ainda se me nega, mas mais uma dose e não faz pouco de mim. Só que não me alembra o nome do rumédio.

O Doutor com a ignição do carro já ligada e o motor ao ralenti, mantinha o ponto mortodo motor travado pela amnésia do Januário.

-Deixe lá Senhor Januário, eu vou ver as minhas notas e logo lhe passarei a receita, esteja descansado.

E arrancou trepidando na calçada velha, até alcançar o alcatrão, onde iniciou uma progressiva aceleracão logo interrompida pelo avolumar no retrovisor da imagem do bom como grande Januário, qual Arquimedes, gritando Eureka! Eureka!, e correndo esfrangalhado, corado, em desespero de corrida inútil.

Já me alembrei, já me alembrei do nome.

Exclamou arfando feliz por alcançar o nome e o doutor.

Diga lá então qual é o nome do medicamento.

É bisnaga! Senhor Doutor, è bisnaga!

E o motor e o Doutor engasgaram, qual computador bloqueado ante um “clik” absurdo, tosco e de pura ingenuidade.

Mas como um médico não é um computador, o bloqueio foi breve e o sorriso irónico.

Óptimo, Januário, vou-lhe receitar duas, e uma injecção para a “bronquite”crónica.

Arbogue
Enviado por Arbogue em 05/08/2014
Código do texto: T4911120
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