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Uma corrida pra lá de São Silvestre
 
  "O horror visível tem menos poder sobre a alma do que o horror imaginado."
                                                                                                                                                                                                            (Shakespeare)
 
Faz parte da cultura do nosso povo nordestino, que vive nas grandes metrópoles, visitar, durante o período das festas natalinas, seus parentes que ainda moram em cidades  do interior. E este ano não foi diferente para minha amiga, Ana Lúcia. Assim que ela retornou das férias, teve pressa em me contar as novidades. Marcamos uma caminhada para um final de tarde, e  pudemos resenhar à vontade.
 
Logo que ela chegou eu perguntei: está disposta a correr hoje? E ela danou a rir..., ria sem parar... Fiquei sem entender nada. Foi aí que ela começou a falar:
 
- Minha amiga, você não sabe o que é correr...
- Claro que sei, Ana Lúcia! Por quê? Não vá me dizer que só pelo fato de você andar pelas bandas de São Paulo, ultimamente, agora vai querer me dar lição  de maratona, tipo a de São Silvestre! É isso?
- Não... não é isso, mas é quase isso. Desta vez eu não fui a São Paulo. Eu estava  aqui pelo  interior da Bahia mesmo. Minha maratona foi lá...
 
Eu comecei achar que minha amiga Ana Lúcia voltou com desequilíbrio mental. Então, fiquei esperando ela se explicar.
 
- Bem, vou lhe contar como foi, amiga: quando eu vou pra o Piemonte da Chapada Diamantina (aquela cidadezinha que você conhece) eu faço caminhada às vezes na beira da pista, às vezes pego umas trilhas e vou me embrenhando sertão adentro, entre aqueles alecrins, em volta das serras... Assim vou respirando um ar puro e mantendo contado com a natureza exuberante, com a passarada que ainda existe muito por lá. Só que nas vésperas da corrida de São Silvestre (que se dá no dia 31 de dezembro de cada ano), ia eu feliz da vida, andando logo cedinho,  fui até  agraciada com a presença de preás e pequenas aves que atravessavam aquele caminho, no seu despertar. Aí, de repente, ouvi um aboio. Parei e pensei: “ acho que vem gado por aí... é melhor voltar”. E voltei.
- Voltou? Mas você não desiste fácil das coisas! Me conta logo, Ana Lúcia, tô curiosa...
- Calma! Bem, assim que voltei, apareceu um rapaz numa moto e disse: “Senhora, vem gado aí. Qualquer coisa a senhora entra numa roça dessa aí... ou monta na garupa da minha moto”. Eu agradeci a gentileza daquele jovem, mas já sentindo o perigo por perto. E assim danei a correr. Acelerei... Cheguei a ultrapassar a moto por duas vezes. Nem eu acreditava naquilo... E não havia outra  alternativa. Não tinha uma árvore grande pra subir, com exceção de alguns juazeiros, mas eles têm espinhos. Só havia arbustos e cercas de pedras de um lado e do outro. Minutos depois,  surgiu um outro rapaz, também  numa moto (é assim que conduzem o gado ultimamente). Dei bom dia e perguntei se a boiada estava próxima, ele afirmou que sim e acrescentou: “Senhora, tem um boi que é cismado... A senhora viu uma casa em construção quando passou?” Eu respondi que sim. Ele, preocupado, me orientou: “ Então, a senhora entre naquela casa e se esconda... Mas não deixe o boi lhe ver, não!”
 
Minha amiga, a partir daquele aviso, eu não mais corria. Eu voava! Eu suava! O coração já tava quase pela boca. Olhei pra trás algumas vezes, mas o caminho era sinuoso, não tinha boa visão, mas sentia os gritos dos vaqueiros que estavam na linha de fundo. E, finalmente... Ufa! Cheguei até a tal casa em construção... Subi rápido o batente. Fiquei atrás da parede que dividia sala e quarto. Pensei rápido: “se ele resolver entrar, eu pulo a janela”. A sorte é que não tinham colocado nem janelas nem portas. Mas eu queria ver a cara daquele boi que me fez testar meus joelhos, meu coração, de forma tão inusitada. Ah, eu pagava pra ver...
 
- Ana Lúcia, você é maluca? Ainda queria olhar pra cara do tal boi?
- Queria. Queria tanto que olhei. E você não sabe da maior: o danado parou em frente a porta por uns três segundos, olhou pra dentro, como se soubesse que eu tava ali...
- Não acredito! E você fez o quê?
- Só fiz mirar a janela... tava prontinha pra pular... Aí imaginei: “Ele vai correr atrás de mim... e eu vou correr dele... Vamos ficar dando voltas ao redor da casa”. Sairia um VENCEDOR e um VENCIDO. Como em tudo na vida, né?   Mas Deus foi tão misericordioso que não permitiu que aquele boi me visse.
Ele devia ser mau mesmo. Porque eram quatro vaqueiros: dois de moto na frente e dois a cavalo atrás, para conduzir cinco reses, apenas. Esta é a  novidade, minha amiga. Encerrei 2014 vencendo a mim mesma.
 
E ficou uma grande lição: os títulos que se acumulam, ao longo da vida, são úteis em determinadas situações. Há momentos que eles não servem para nada.

Imagem: Google.