MALA VELHA

Diziam, lá em casa, que aquela mala velha tinha sido trazida de Portugal pelo pai do meu avô, portanto pertencera ao meu bisavô.

Coisa antiga, feita com material de primeira, para aguentar muitos anos de uso.

Na casa dos meus avós tinha uma dependência para empregada doméstica mais ou menos no meio do quintal.

Para os padrões de hoje, seria considerada uma casa ou apartamento porque continha o quarto, o banheiro, uma saleta e área com tanque para lavagem de roupas que também servia de varanda para passar roupas a ferro nos dias quentes ou estendê-las nos dias de chuva.

No quarto, ao lado da janela, havia uma espécie de armário com várias prateleiras de tábuas encaixadas na alvenaria e, lá em cima, na última das prateleiras essa mala velha ficou sem uso durante muitos anos, até que um dos meus tios resolveu fazer dela um porta revistas, ou algo do gênero, para colocar na sala de visitas da casa que ele estava construindo e para onde se mudaria logo que estivesse concluída.

Era comum naquela época os filhos, depois de casados, permanecerem por alguns meses ou anos nas casas dos pais.

Era uma forma de aliviar o trauma da separação da casa paterna e sair de debaixo das asas da mãe, sempre acolhedora e que sempre arranjava uma desculpa para que os filhos continuassem juntos na mesma casa, principalmente quando elas ficavam viúvas, porque os maridos têm o mau costume de morrer bem antes das esposas.

Minha avó teve quatro filhos, sendo dois homens e duas mulheres.

O primeiro filho, bem mais velho do que esse que inventou de usar a mala, trabalhou por muitos anos na Rede Ferroviária, era maquinista. Passava um ou dois em casa, depois viajava outra vez.

Tinham as viagens curtas, quando ele voltava no mesmo dia e tinham as longas que demoravam até mais que uma semana.

Esse meu tio morreu ainda bem moço por causa de um desastre entre o trem em que ele era o maquinista e outro trem de carga que estava na linha errada, na hora errada e o controlador não se deu conta.

Bateram de frente e praticamente as duas máquinas se transformaram numa só, morreram os maquinistas e muitos passageiros. Entre eles pessoas que não foram reclamadas pelos parentes e que foram enterradas como indigentes.

Talvez por causa dessa vida de viajante que não tem paradeiro, ele nunca casou. Dizia que não era certo ele amarrar uma mulher dentro de casa e viver no meio do mundo, deixando ela sempre a esperar pela volta para ter um momento de companhia.

Mas voltando ao caso mala.

Ela precisava de uma boa limpeza, ser colocada no sol para tirar o bodum de coisa guardada, mas antes de fazer isso, era preciso passar um pano úmido para remover o mofo que se formara sobre o couro do revestimento deixando-o esverdeado.

Depois de tirar o grosso da sujeira, meu tio tentou abrir, mas ninguém sabia onde encontrar a chave e seria um desperdício estragar a fechadura de prata que, depois da escovadela que levou, ficou brilhando como se fosse nova.

Apesar de ter tamanho médio, a mala estava pesada e o conteúdo variava de lugar quando de mexia nela.

Talvez fossem livros.

Por ele a mala ficaria tal como estava, mas sabe como é mulher, né?

A esposa do meu tio Saulo falou tanto, resmungou tanto, azucrinou tanto o juízo que, para se ver livre do falatório ele resolveu trazer um chaveiro para abrir a mala e fazer outra chave.

O homem passou um bom tempo estudando a fechadura, colocando lubrificante e por fim, com o auxílio de uma gazua conseguiu abrir.

O conteúdo foi surpresa para todo mundo.

Tinha dois maços de cartas amarradas com barbante, um álbum de fotografias, uma grinalda de noiva com véu de renda, e uma pasta com certidões de casamento e de nascimento e de óbito, além da certidão de batismo de uma menina.

Sem alarde, meu tio Saulo e a mulher dele passaram a examinar todo. Primeiro viram o álbum de fotografias.

O meu tio defunto ao lado de uma moça muito bonita; as fotografias do casamento deles dois, e ela usando a grinalda que estava na mala; depois fotografias numa praia cheia de coqueiros e muitas pedras e dunas; depois essa moça grávida e eles numa varanda com um cachorro; noutra fotografia meu tio dormindo numa rede; depois os dois numa praça com as mãos cheias de pacotes, como se tivessem acabado de comprar o enxoval para a criança que iria nascer; depois a fotografia de uma criança com o rosto deformado, com a cabeça muito grande, tomando soro numa cama de hospital...

Depois, essa mesma criança morta num caixão branco...

As certidões diziam que Samuel e Iracema dos Anjos, cujos pais e avós eram citados como desconhecidos, haviam casado e que a menina, Alice era filha deles. Menos de dois meses separavam as datas das certidões de óbito das duas.

Um dos maços eram as cartas que Iracema, havia mandado para a caixa postal dele na agência central dos correios e o outro eram as respostas dele, também sem endereço, para serem retiradas na estação de Salgueiro, alto sertão de Pernambuco.

Algumas, as mais antigas, eram cartas de amor, enfeitadas com flores e versos, outras de desespero pelas complicações na gestação, no parto, nas doenças tanto da mãe como da menina. Os reiterados pedidos para que eles mudassem para uma cidade mais adiantada e as negativas sistemáticas até que tudo cessa perto da data da morte da Iracema.

Os motivos que teriam levado o meu tio a proceder daquela maneira; por que jamais falou sobre esse relacionamento; quem seria essa moça e a qual família ela pertencera, eram perguntas para as quais ninguém saberia as respostas.

Diante disso e combinando apenas com a minha mãe, tio Saulo empacotou todo o conteúdo da mala e guardou no jazigo da família, dentro do pequeno ataúde contendo os ossos do tio Samuel.