Médicos cubanos e o dialeto de Pitangui

Isso foi num tempo já perdido no tempo, quando o Brasil precisou importar médicos cubanos. Dizem que alguns foram para o Centro-Oeste mineiro e um deles baixou em Pitangui. Aconteceu que, semanas depois, pediu transferência, explicando em "off" que não entendia o português daquela gente. Aliás, os pitanguienses sempre foram meio diferentes, rebeldes a seu jeito, "gente intratável" como já diziam na época colonial. Quem quer saber mais, leia o livro "Vassalos Rebeldes", de Carla Maria Junho Anastasia.

O causo é com esse médico importado e um dos seus primeiros pacientes, que, se fosse vivo, não me deixaria mentir sozinho. O médico ainda preso ao idioma espanhol, embora soubesse, em teoria, tudo de português, examinou o paciente e foi logo dizendo: - Usted tiene que cortar la cerveza, la carne gorda y la pimenta. Ao que o bravo pitanguiense, sorrindo meio de lado, um ar de superioridade, cortou foi o papo do gringo, retrucando sem esperar resposta:

- Capa não, sô.

E saiu do consultório meio amolado, jurando que nunca mais ia consultar com médico da língua enrolada. Já o médico, notando que todo aquele português que tinha aprendido não era suficiente para entender o pitanguês, tratou foi de enturmar-se. Conhecer o idioma daquela gente era fundamental para continuar ali, desempenhar bem seu papel de médico e até para desertar, se fosse o caso. E não há lugar melhor que um boteco para enturmar-se. Lá é onde se fala a língua do povo.

Passando pela praça, viu um bar com muito movimento e deu pra notar, de fora, que tinha sinuca. As atividades do turno da tarde já tinham se iniciado e havia muita gente concentrada em seus afazeres, olho na mesa, mão no giz e no taco, toda uma ciência e um ofício.

Numa das portas, um frequentador encostado, mãos nos bolsos, tampando a entrada, camiseta regata desbotada e descosturada nas laterais, o olhar meio perdido no horizonte. Tinha duas cervejas na cuca e olhava o movimento da Praça da Estação, ou Brito Conde, como queiram.

O cubano, meio sem graça, muito formal, coisas da criação na ilha dos Castro, na hora de entrar, pediu passagem pro folgadão : - Puedo entrar? Com licencia ... O outro, intrigado, chateado talvez com a formalidade num lugar tão informal ou talvez por ter sido interrompido em seu devaneio, dá passagem, enquanto responde logo, em bom pitanguês:

- Capa não, sô! Vai tafuiano. Uai, o trem aqui é nosso.

Foi a gota d'água. "Tafuiano ..." Era demais. Pediu e conseguiu a transferência para o Norte do país, e nunca mais se soube dele. Porém, se lhe tivessem ensinado o que aprendi num dia de apuração de eleições no Fórum de Pitangui, ainda quando Nova Serrana não era Comarca, talvez a questão não tivesse sido tão dramática para o simpático doutor cubano.

O fato era que eu estava acompanhando as apurações de Nova Serrana pelo saudoso Correio de Pitanguy. A meu lado, não querendo perder um lance da contagem dos votos, estava um conhecido de Nova Serrana. Ele, amolado com o desenrolar das apurações que davam já como certa a derrota do seu candidato, balançava a cabeça e dizia:

-Não dá mesmo. Já era. Se eu voltar pra Nova Serrana hoje eles vão "bater capa". Vou daqui pra Beagá, só volto daqui a uma semana.

De repente, tudo ficou claro: "bater capa", óbvio, como se faz na tourada. Daí, a expressão migrou para Pitangui: "capa não, sô". E as derivações, criativas, umas alcançando o campo futebolístico: "não me CAP, sou PEC".

Então, o capar de Pitangui, que a maioria relaciona com "castrar", não tem nada a ver com o porco. Tem a ver, sim, com outro animal, o touro, que tem de aguentar as provocações do toureiro, que lhe " bate a capa", enfurecendo-o aos poucos. Nada do porco. Fulano é capador. Bingo, eureka. Entendido. E as derivações que vão transformando cada vez mais o significado inicial, a ponto de deixá-lo irreconhecível, como no caso de "castrol", variação de "capador".

Ah, se o cubano soubesse! Estaria aqui até hoje, consultando gente e, quem sabe, ensinando espanhol no colégio. E nesse diapasão, quem explica o que é "chegá o reio?" Quem explicar bem explicadinho ganha um ingresso pra copa. Só que pra Copa de Cuba, quando houver Copa por lá, e eu tiver dinheiro pra cumprir a promessa.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 29/05/2015
Reeditado em 25/04/2022
Código do texto: T5259185
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