O Enterro de Shakyra II

O pequeno caixão era carregado por um funcionário enquanto alguns hóspedes e outros funcionários acompanhavam em silêncio. Carla teve a preocupação de olhar as árvores em roda. Surpreendeu-se com o movimento das araras. Duas vermelhas e uma azul. Amigas de Shakyra quando ela era viva. Acompanhavam o féretro do alto, voando de árvore em árvore. Comovente era ver as três araras esfregando-se uma na outra, como que se abraçando e consolando-se entre si. O mais curioso é que as duas araras vermelhas nunca se aproximavam da azul e vice-versa. Viviam às turras. A morte da amiga as fez esquecer suas rixas por aquele momento.

Quando o caixão desceu as araras procuraram o melhor ângulo sobre as árvores para melhor assistirem a descida do caixãozinho. Do meio do mato saiu um grito longínquo, como que um choro ou lamento proferido por um parente distante de Shakyra. As araras fizeram uma grande algazarra quando cobriram o caixão.

Nonato que era um discípulo de um pajé numa tribo indígena onde nascera, disse que os animais não lamentam a morte de outro animal. Tentam consolar o espírito protetor do animal morto. Este espírito por sua vez, estaria inconsolável. Estaria frustrado por ter falhado na missão de salvar seu protegido, permitindo que ele caísse numa situação perigosa, sem proteção. Nonato disse também que quando um animal é abatido, para consumo, aquele que abate o animal deve pedir permissão ao espírito protetor do animal abatido. Explicar a esse que havia necessidade de abater o animal para mitigar a fome. Caso contrário a vingança do espírito protetor pode vir sem esperar. Os índios conhecem esses rituais para acalmar os espíritos.

Contou a história de um carro, que vinha em alta velocidade na estrada que vai a Boa Vista. Atropelou dois macaquinhos que atravessavam a rua. Quando parou, deu ré e quis socorrê-los, surgiram muitos do mato, fazendo uma gritaria chorosa. O motorista, vendo que o estranho ali no meio da selva era ele, ficou receoso de se aproximar muito. Assistiu comovido a tribo de macaquinhos carregarem os companheiros mortos para a floresta. Nonato disse que não o levaram para comer, pois os macacos eram herbívoros.

Para ouvir e entender as histórias da floresta, é preciso desligar-se das restrições que se aprende no mundo cristão. Jamais encarar esses fatos como crendice ou heresia. Mesmo porque encontram eco em outras crenças do outro lado do mundo.

Os humanos, que aprendem que a verdadeira vida é a vida espiritual, têm tanto apego à vida material. Que dizer então dos animais, os quais supomos não ter crença nenhuma?

Luiz Lauschner
Enviado por Luiz Lauschner em 15/06/2007
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