A FUGA

Elzinha já estava decidida, iria fugir de qualquer jeito daquela casa naquela madrugada fria e escura, não aguentava mais aquela situação humilhante, deplorável, repugnante, era tratada com enorme desprezo e crueldade por Edite, sua madrasta, um ódio vindo não se sabia de onde, Elza sempre fez o que pôde para agradá-la, tentou, fez de tudo para ser a filha que ela não teve, cuidou dela quando enferma vários dias numa cama dando-lhe remédio, passando–lhe pomadas nas feridas e até comida na boca a moça lhe dava, com o tempo e os devidos cuidados a ingrata senhora se recupera, ainda mais rude e insensata com a jovem. Antônio de Castro, seu pai, um homem meio matuto, meio ignorante, não pelo fato de ser cruel, mas pelos ensinamentos que adquiriu na única escola que passou, a escola da vida, onde seu caderno era a terra de chão batido cuja escrita se traçava no cabo da enxada, assim que passava o dia inteiro seu Ontôin ,no mato, na roça o dia inteiro e quando chegava em casa, logo se deitava, bem logo após a janta, não interferia em nenhum assunto que se passava na casa, talvez não tivesse força depois de um dia inteirinho debaixo de um sol escaldante, talvez achasse que sua esposa, dona edite fosse a dona de casa perfeita, já que o humilde casebre de sapê estava sempre em ordem, suas poucas roupas sempre bem lavadas, passadas e costuradas que nem pareciam trapos de um pobre lavrador, as panelas brilhavam como espelhos na parede, nenhuma sujeira no quintal, enfim, tudo em seu devido lugar, sem contar o tratamento carinhoso que a senhora lhe dispensava, numa atenção divina, ora de forma despretensiosa pelo modo como uma esposa trata o marido , ora dissimuladamente pela forma como uma pessoa interesseira trata alguém.

Mas com Elza a enteada, não havia nenhuma simulação, o tratamento era um tanto cruel, escravizante mesmo, obrigava a moça a fazer tudo, passava o dia inteiro com um chicote de couro mandando; faça isso, faça aquilo, encere o chão, lave as panelas não estão brilhando e assim era o dia todo, pobre menina, que quase nunca apanhava com o chicote é verdade, era só para intimidá-la, mas volta e meia recebia alguns puxões de cabelo, puxões de orelha e empurrões, além disso tudo, das sovas e do trabalho interminável que calejava as mãos e a vida de Elzinha, tinha algo que ela detestava fazer todo santo dia, mas tinha que fazer mesmo com nojo, mesmo com a ânsia de vômito que aquilo provocava nela, tinha que catar alguns dejetos espalhados pelo quintal, tinha certeza que aquilo eram mesmo fezes humana que alguém ali deixava por quase todas as noites e muitas vezes, em mais de um lugar, vários montinhos daquilo pelo quintal que a moça tinha que retirar logo cedo antes do café da manhã, sua madrasta um dia lhe dissera que nem queria passar perto daquilo. Quem seria? porque logo ali? A moça já não tinha tantos afazeres e ainda alguém passava por lá durante a noite e fazia aquilo, seu pai, apesar de sair ainda com escuro, apesar de ser meio matuto, era um sujeito íntegro, correto e respeitador, jamais faria uma coisa dessas, ele mesmo odiava aquela situação, prometia que qualquer dia ficaria de tocaia para pegar o sujeito que muitas vezes lhe fazia escorregar no quintal ou simplesmente obrigara a limpar as botinas logo bem cedinho, ainda escuro, antes do alvorecer. Elza sabia que dificilmente seu pai pegaria o tal sujeito, pois o velho quando se deitava, virava uma pedra na cama, quando por algum motivo que fosse, era preciso acordá-lo à noite, dava bastante trabalho para quem o chamasse, era uma situação de quase desmaio, só levantava por volta das cinco para trabalhar na roça, antes disso hibernava como um urso. Não seria ele quem pegaria o imundo, as cinco da manhã a bagaceira já estava pronta, espalhada e fedendo no quintal, ainda assim, ontôin prometia que quando o pegasse, o faria comer aquela nojeira, fosse quem fosse, jurava pela alma dele, edite a esposa arregalava os olhos e dizia; ´´ que conversa fiada homi, dexa di bestera e se for gente rúim?

Elzinha já não aguentava mais as humilhações que sofria da velha malvada e rabugenta, pensava em contar mais uma vez para seu pai sobre os maltratos, não adiantaria, a madrasta iria de novo fazer um drama, chamar Elzinha de ingrata, choraria, se faria de vítima e o velho acreditaria em quem? Na esposa é claro, que na sua frente era um verdadeiro doce, um anjo em pessoa, Elzinha é que estava delirando, na idade da rebeldia.

Portanto a moça decidira, fugiria naquela noite mesmo, esperaria quando todos dormissem, pegaria apenas as mudas de roupa que já estavam separadas debaixo da cama e sumiria no mundo, por um caminho qualquer, sem rumo, apenas na direção que seu destino a guiasse, ela sabia que iria ser difícil, que iria sofrer, mas sofrimento por sofrimento, pelo menos seria livre, dona do seu nariz e do seu destino.

Anoiteceu, Elzinha nem quis jantar, estava ansiosa e nervosa, suas mãos suavam, as pernas tremiam, mas já estava decidida, não via a hora de ganhar o mundo, o casal neste momento já estava na cama, o sono pesado do seu pai já era anunciado pelo som de um ronco feroz parecido um pouco com o barulho de um trator distante, incansável, já quanto a velha, não sabia, iria esperar mais, até que tivesse certeza que ela adormecera, não acenderia a lamparina para não despertá-la, se guiaria vagarosamente pelas paredes até chegar à porta, não, mudou de ideia, não passaria mais pela sala, na frente do quarto dos velhos, e se tropeçasse em algo? E se de repente a velha ainda acordada com insônia percebesse um vulto ascendesse a lamparina fosse atrás e a visse fugindo? Não passaria mais pela porta da sala, muito menos pela sala da cozinha que rangia mais que a roda de um carro de boi, ela fugiria pela janela do seu quarto, porque não pensara nisso antes?

A hora chegou, pensou por um instante em desistir, mas como a vontade de ser livre como um pássaro e feliz como a lua era maior, sentiu uma coragem nunca sentida antes, ´´ é agora´´, disse bem baixinho para si mesma, nesse momento seu coração já batia tão forte que a moça imaginou que pudesse ser ouvido por alguém, mas lá foi ela, respirou fundo subiu na cama, girou a tramela bem devagarinho a janela se abriu, e na medida que se abria entrava a claridade da lua cheia que tanto a fascinava, Elzinha então pulou para fora, o salto da liberdade foi com tanta vontade que até fez um pouco de barulho quando os pés encontraram o chão, não se importou com isso, já que àquela altura sua atitude que seria imperdoável não tinha mais volta, sairia correndo bem rápido pelo quintal e se embrenharia na mata em direção ao infinito, ninguém a alcançaria nem a impediria, e assim após o salto barulhento começando a correr pelo quintal em direção ao portão, se assustou e parou imediatamente ao ver um vulto de cócoras em sua frente, o vulto mais assustado ainda deu um grito bem alto, desesperador, se levantou rapidamente, pisou naquele troço gelatinoso, se escorregou e caiu com a cara em outro troço gelatinoso recém fabricado momentos antes. Com a cara coberta daquele jeito, envolta de uma máscara facial fedorenta, não dava para reconhecer o indivíduo, mas o grito revelou uma voz familiar e aquela camisola feita do retalhos do lençol da moça, era inconfundível, tinha toda a certeza do mundo, era a velha coroca a sugismunda, nesse momento ontôin abre a porta e sai com sua garrucha na mão, a moça já foi logo dizendo; ´´ é ela pai, o cagão que o senhor queria acertar´´, o velho ainda assustado e atordoado pelo grito aterrorizante que acordaria qualquer pedra, despertou-se e percebendo um pouco a situação, mesmo meio confuso e esfregando os olhos com a cara amassada, apontou a arma para a fedorenta mascarada ia apertar o gatilho, mas não teve coragem, deu apenas um tiro para o alto, a velha então que saiu correndo e se embrenhou na mata para nunca mais ser vista naquela região.

GILMAR SANTANA
Enviado por GILMAR SANTANA em 28/06/2015
Reeditado em 30/06/2015
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