Independência, FOME ou MORTE

Quinzim era um sujeito lendário, daqueles que mesmo sendo improdutivo para o município, lograva ser um cidadão bem quisto por todos da cidade, inclusive querido do prefeito e família. Além da honestidade incondicional, sujeito bem mandado e incapaz de ofender uma barata, não havia vivalma que dissesse mal dele. O máximo que poderiam dizer era sobre sua vontade de trabalhar, fato que ele mesmo sabia e não negava sua faceira preguiça de andante feliz.

Porém, sua humildade intrínseca, o sorriso largo na boca dominada por meia dúzia de dentes amarelados pela nicotina dos tempos de fumante e o desapego pelas coisas materiais, faziam dele uma “peça rara” e “figura” singular e única da cidade. Quando despertava com aquela baita vontade de ser útil, fazia ponto nas oficinas dos conhecidos e por ali ficava até sair a ordem de serviço, que via de regra, era para comprar alguma mercadoria nos comércios; fazer jogos na casa lotérica; dar recados para alguém nos arredores e o mais usual, ir fazer a “fezinha” no jogo de bicho para o pessoal.

A cada dez solicitações de seus préstimos, oito eram para esta finalidade; o que Quinzim fazia sem esboçar o menor constrangimento ou desprazer: bater perna era com ele mesmo. Passatempo predileto. De vez em quando arrumava uma camisa amarela e uma calça azul, botava no ombro uma bolsa cheia de jornal e saia pela cidade, dando uma de carteiro. O cidadão era inventivo e conseguia visualizar um mundo totalmente fora do alcance da maioria os comuns.

Caia a boca da noite, o circulante citadino recolhia-se. Para esquecer que não havia salivado nada durante o dia foi o que fez mais cedo. De vez em quando acordava impaciente.

Com muito custo, o dia raiou. Quinzim acordou com uma barulhada infernal na barriga, parecia uma escola de samba regida pelo Crioulo Doido. Mal lavou a cara e partiu. Na semana anterior, vendo-o defronte a oficina, o proprietário o chamou e disse que tinha alguns “carretos” para ele fazer e recebeu uma solene resposta que naquele tarde estava cansado de não fazer nada e que não iria trabalhar. Teria que descansar e não estava a fim de andar, sendo que havia caminhado mais de 20 quilômetros naquele dia.

Num estalo lembrou que o Oficineiro poderia ainda precisar de seus préstimos e rumou para lá. Chegou por volta de 7 horas da manhã com a fome sovelando a barriga e varando nas costas. Fome diabólica. Sentou, cruzou as pernas num “x” sem jeito, acendeu uma bituca (fato raro) de cigarro e ficou pitando a solidão. O dia corria estranho, com um ou outro transeunte passando por ali. Nada o preocupava, exceto o estômago que de pouco em pouco, revoltava-se contra ele. “O inferno de fome que não me larga. Tenho que engabelar ela”. Mudava de posição e assim esperava pela abertura das portas. Quando deu por si, o sol já tinha partido e a noite chegara novamente. Pensou que tinha algo errado; como realmente devia haver, porém não se atinava em nada. Voltou para casa, se é que a possuía. Era desprendido de tudo. Nutria profunda honestidade com todos, a ponto de esquecer-se de ser honesto consigo.

No dia seguinte retomou à tentativa de satisfazer o apetite de fazer algum trabalho e em virtude de seus esforços, levantar uns trocados e com o dinheiro, comprar algumas coisas para comer. A fome lhe corroía a paciência. Assim que ouviu o ranger das portas da oficina, entrou em disparada. Os funcionários ficaram estupefatos, aquela cena nunca acontecera. Foi logo dizendo: “Cadê fulano”?

- Está lá dentro. As encomendas eram para serem entregues na semana passada.

- Não é com você que quero falar. Quando for com você, peço para chamar. E foi entrando pela oficina adentro.

O Oficineiro veio ao seu encontro: “O que foi Quinzim? Hoje não tem nada para você. Espere para tomar café. Depois você segue...

- Não quero porra nenhuma de café. Quero receber em dobro o meu pagamento. Apenas isto.

- Do quê está falando? Ficou louco? Explique-se. Dormiu com a bunda pra lua e o resfriado entrou por algum buraco, atingindo-lhe os brônquios? Cada dia uma.

- Vai gozar quem é para ser gozada. Já disse que quero receber o dia de ontem. E em dobro. Esta pensando que sou trouxa: sei bem dos meus direitos.

- Receber o quê? Quem te deve, que te pague; não vou pagar por ninguém. Quem está te devendo, fale quem é que vou negociar com a pessoa. Se for o caso, pago por ele.

- Você que me deve. Fiquei na porta da oficina das 7 da manhã até escurecer e nada de subir as portas. Uma fome de cão vira-latas. Quero receber e em dobro.

- Perai, você esteve aqui ontem; feriado? Ontem foi Sete de setembro, dia da Independência do Brasil. Faz tempo que não vai à escola, heim meu amigo Quinzim?

- Ié? Feriado daquele homem montado num cavalo branco que gritou: "Independência, Fome ou Morte" à beira do rio? Já que a "pindura" de Deus com o povo está nas nuvens, vou tomar o café e você põe na conta dele, então!

Tomando avidamente uma jarra de café com leite e saboreando os pães com margarina, com a boca suja e a cabeça ruminando ideias, pensou: “usam as datas dos feriados para me enganar. Quê Dom Pedro é esse que não faz nada da vida e ainda cria o feriado só para deixar os trabalhadores com fome? Pobre não vai pra frente por estas e outras: sempre tem um filho de puta para puxar agente para trás". - e meteu os cinco dedos dentro da boca, completando a limpeza com os beiços, lambendo-os.

Segue com o segundo episódio

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 10/07/2015
Reeditado em 10/07/2015
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