O Pão Queimado

Gostaria, como todos apreciam, de compartilhar uma tênue lembrança, que me vem à tona do pensamento trazendo de volta um cenário de tempos atrás, ao qual inspira carinho sua recordação.

Pode-se dizer que o cerne dessas memórias ocorre nas lembranças de antigos sábados, que me rememoram tardes de sol e noites de movimento; pois residia eu em uma cruzada de ruas que eram divididas por uma rotatória. E logo à esquina vizinha havia um estabelecimento regido por um trio de irmãs portuguesas.

Leitores, não sei se compartilham de minha visão, mas meu estereótipo identifica boa cozinheira como matrona grossa e de rústicos modos. Como se os lipídios lhe influíssem bem o dom da culinária. E as patrícias portuguesas pareciam possuir ótimo desempenho na rede de lancheterias simples de São Paulo. E com esta narração, as imagens transcendem o nível de simples lembranças, e já se põem a sondar a imaginação. Com isso, fico a idealizar as mulheres moldando as massas e cosendo comida; cada uma dentro de sua designação.

“Tu vais fazer a coxinha”!

“Tu grudas a carne crua”!

“Patrícia, vá para o balcão”!

E assim devia ser; tudo muito bem soado ao redondo e maravilhoso português de Portugal. Ora, e estão certas as mulheres, pois tens que trabalhar para alcançar a fortuna. Peleje à beira do fogo, porque cada gota de suor equivale a mais uma moeda dentro da bolsa.

Bem, todo texto é atratativo dependendo de sua introdução, e este conto termina esta agora mesmo. Já posso e devo seguir com a trama; que é bastante sumária, confesso, mas digna de grande reflexão.

Houve um tempo, nesta mesma época, em que estive adoentado. Desidratação e uma sezão diabólica que não cessava de forma alguma, nem com mil rezas; causava-me golpes de frêmitos e calafrios. Contudo, estive num hospital, depois fiquei trancado por dias. E acredito que as memórias se esclareçam bem, pois era período de Copa do Mundo. Não há brasileiro que se esqueça.

E com toda a dificuldade que tinha por comer, devido a moléstia passageira, minha mãe trouxe uma culinária bastante simples e me botou ao prato: beterraba e cenoura raladas. Arroz em bolotes e feijão molhado. Também uma salada de vegetais, com uma alface seca e o tomate esverdeado.

Decerto, após comer bem, minha mãe revelou-me que fora traga da famosa lancheteria. E apesar de ter considerado uma comida quase pífia, fora a única refeição que me desceu ao estômago sem que voltasse. E esta simples opinião já dá fresta para entrarmos no principal raciocínio desta trama, que vem a ser o devaneio dos olhos. E esta expressão provém de imagens exacerbadas pelo próprio estereótipo. Sendo matronas, cozinheiras e portuguesas; isto já dá grande azo para dizer que são coques de mão cheíssima, porém, ao provar das simples iguarias, concluí que somente sabiam o que fazer de frente ao fogo. E com esta experiência, posso afiançar que o maná de todos os dias de minha mãe era melhor.

Dessa forma, como já é de conhecimento, não pude exultar o apetite naquele dia; tanto pela saúde, como pelo sabor. O que mais me causou prazer na língua foi um mero suco de goiaba, este me recordo que era bom de verdade.

E então foram-se os meses, em seguida correu-se os anos. Aos sábados passei a deixar de almoçar, tudo porque a um mero dia minha mãe me mimou com um sanduíche, que passou a ser minha refeição.

Um grosseiro sanduíche de carne e salada. Esta com as folhas de alface destemperadas. As rodelas de tomate eram cruas, sem aros de cebola salpicados de orégano. Já o hambúrguer bem que possuía bom sabor, mas bastava engoli-lo, e dava-mos com um bolote de areia molhada e calcada na traquéia, pois esta era a impressão. E sem mencionar de que não era banhada a óleo, somente seca e rosada no miolo, com aparência de crua.

Havia aí somente um atributo que não difamava aquele sanduíche por total: o pão redondo com miolo torrado o dava um sabor originalíssimo. Era como torrada com fermento macio.

Todos os sábados, antes de consumir, jogava eu molhos de tomate e mostarda para dar um gosto que fosse àquela salada insípida. Cortava com talheres a carne grossa, e em seguida o final esperado. Tudo para saborear o pão torrado, que fazia de fatia única, e era o que mais me inspirava a ingerir aquele sanduíche grosseiro.

Agora, leitor, que já passamos da metade da narração, já começo a chegar ao ponto em que desejava; ao qual entra um conceito psicológico que aqui já fora citado, mas ao fim será melhor trabalhado e exposto.

Portanto, com o decorrer dos meses, posso dizer que o tal miolo queimado fora perdendo o sabor crocante de torrada. E aos poucos, rebaixando-se ao sabor vulgar daquele sanduíche mal feito.

Então, posso voltar com o conceito que fora citado parágrafos antes, que expressei como devaneio dos olhos. E esta linha de sensibilidade está entre os confins da mente e do pensamento.

Certo dia, passava eu à porta do quarto de minha mãe.

- Já tem fome?

- Ainda não.

- Bem, em todo caso – Disse, entrando da sacada. – vou deixar o sanduíche reservado com a portuguesa.

E passou por mim; deixando aquele comunicado monótono e despretencioso me incutir tamanha surpresa. Pois não sabia que o sanduíche provinha da lancheteria das portuguesas. Coloquei-me a pensar.

Inferi que existiam então defeitos puros e originais, sendo estes esboços do pecado. Há também as imperfeições interpretativas. E contudo minha opinião sobre a culinária daquelas mulheres era uma dessas.

Bastou raciocinar: se meu mau gosto para as iguarias dali resultasse de um defeito puro, jamais mostraria gosto por alimento que fosse. Porém, o tal miolo tostado do sanduíche já havia me agradado muito. Por coincidência ou não, toda a linha gastronômica que aquelas portuguesas faziam com tamanho melindre, me causava aversão; o único detalhe que possuíam de defeito, um pão queimado, me caía bem. Está é uma original contradição humana, eu diria.

Sentenciando, meu julgamento era por interpretação, pois muitos diziam maravilhas de tal culinária. Eu não. A percepção deles apenas corria diferente da minha, questão de gostos que o próprio paladar impõe para cada um.

Definindo: imperfeições interpretativas são atributos que não agradam. Já defeitos puros ou originais, são características que nos enfadam de verdade. Imprecisões podem ser corrigidas, porém características permanentes... Acredito que seja bastante difícil, mas não sou ninguém para definir o que é impossível.

Por fim, tinha eu nem quinze anos vividos. Ainda não era tempo de filosofar. Apenas decidi não mais comer sanduíches aos sábados. Pobre de minha mãe, teve de voltar a cozinhar.

Vinícius Thadeu
Enviado por Vinícius Thadeu em 29/07/2015
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