Galinha à Cabidela

Vocês não vão acreditar nessa história. Mas não é de pescador; aconteceu com o amigo Ferreira, conforme ele mesmo conta.

 

- Quando eu era “menino pequeno”, morava com minha família, que não era pequena, no povoado de Pirituba. Vocês conhecem. A diferença é que naquele tempo a vila tinha poucas casas; não tinha calçamento, nem maternidade, nem água encanada, nem praça, nem nada. Meu pai trabalhava aqui em Vitória na Prefeitura e minha mãe só tomava conta “da gente” e da casa. Éramos cinco em casa: meu pai, minha mãe, Manezinho, eu e Fátima. Não éramos uma família bastarda, mas também não faltava nada em casa. Mas menino sempre tem uns desejos que fogem ao cotidiano. Em casa sempre tinha refrigerante, doce e nos domingos galinha para o almoço. Aí é onde reside a questão. Eu tinha a maior vontade de comer doce com guaraná até a barriga não agüentar mais. Quando eu via minha mãe abrir uma lata de doce – geralmente bananada – meus lábios chega ficavam dormentes. Mas eu sempre ganhava um pedaço e um copo com guaraná ou cajuína. Às vezes eu colocava água no refrigerante para aumentar a quantidade, mas perdia o sabor, principalmente quando não era guaraná do bom. Outra coisa que me fascinava era a titela de uma galinha à cabidela. Em casa mãe sempre matava galinha, mas a titela deixava para assar na brasa, cozinhava as outras partes. Eu, como não podia ser diferente, sempre comia um pedaço: o pescoço, a asa, uma parte da coxa, mas nunca era à cabidela. E assim fui crescendo com aquela idéia fixa e sempre pro metia a mim mesmo: quando eu crescer que trabalhar, vou comer uma lata de doce todinha e tomar um refrigerante daqueles bem grandes. Assim fiz. Quando tinha uns doze anos fui trabalhar ajudando na vacaria de seu Napoleão e com o primeiro salário que recebi fui à venda de seu Josias, comprei três latas de doce e um guaraná de 2 litros e meio e escondi em casa para comer a noite quando os demais estivessem dormindo. No interior se dorme cedo. E quando pai, mãe, Manezinho e Fátima “tavam” dormindo, eu me levantei, abri as latas de doce e o guaraná. Forrei um saco de estopa no terraço sem acender o candeeiro e comecei a comer doce e tomar refrigerante. De madrugada eu já estava empanzinado de doce e só tinha comido duas latas e bebido uns dois litros de guaraná. Não agüentando mais comer e nem beber, escondi no mato o restante do doce e descartei a garrafa com o restante de refrigerante. Outra hora comia mais doce. Fui dormir; não consegui. Começou uma dor de barriga que não parava, mas, mesmo assim, eu estava satisfeito, satisfiz minha vontade. Ao amanhecer o dia fui trabalhar na vacaria, mas não conseguia ficar de pé, foi o tempo todo de cócora no mato, devo ter descomido umas dez latas de doce.


Mas a vontade de comer a galinha à cabidela não parara. Era uma coisa que não me saia da cabeça. Em casa a galinha continuava sendo cozida do modo tradicional. Quando eu já tinha uns dezoito anos e já andava atrás de namoradas, fiz amizade com uma tal Dodô que se dizia uma exima cozinheira e que tinha as mãos de fada para fazer buchada e galinha à cabidela. Era uma vendedora ambulante que costumava aparecer numa venda que eu também freqüentava. Ela morava na cidade e certa vez me convidou para conhecer sua casa e também algumas colegas suas de trabalho e amigos que freqüentavam uma associação de moradores e lá costumavam se reunir e, às sextas-feiras, promoverem um almoço coletivo. Fui convidado para um desses almoços, cujo prato seria uma galinha de capoeira à cabidela. Aceitando o convite, a amiga me informou sem pudor algum, que sendo a primeira vez a participar da comilança, teria eu que participar com a compra de uma galinha, de preferência grande e gorda. E sem muita delonga, me arrebatou a quantia de dez reais. “O pseudo almoço” teria duas galinhas à cabidela. A segunda seria comprada pelo companheiro Regis do Amendoim. Para degustarmos o apetitoso almoço a cabidela ficou marcado o sábado dia seis de janeiro, às treze horas (uma hora da tarde).


Certo de que a galinha à cabidela me esperava: larguei do trabalho e fui correndo para casa tomar banho e mudar a roupa. Vesti até uma camisa de linho reservada para festas. Avisei a minha mãe que não almoçaria em casa e partir já de água na boca. - “Aquela coxinha”! –

Mas, para meu desengano e descontentamento, quando cheguei à associação apenas umas quatro pessoas ainda se encontravam por lá, fartas de galinha à cabidela. E minha amiga de mãos de fada, que junto com Neide e Betoven comeram quase que as duas galinhas todas, escondida num banheiro por ouvir o eco da minha voz. Oi Jonas, ainda disse Mirian, outra comilona.


- Dodô já foi e a galinha acabou. Os ossinhos que sobraram Neide levou para fazer a canjinha de Betoven.

Resultado: em casa não tinha mais o que almoçar. Tínhamos horário certo para as refeições e cheguei com mais de duas horas de atraso. E da forma que tava frustrado creio que nem conseguiria comer.


Hoje odeio galinha à cabidela.

limavitoria
Enviado por limavitoria em 25/06/2007
Reeditado em 01/07/2007
Código do texto: T540921