*Piauí, terra de cabra ruim.

Piauí, terra de cabra ruim.

Num país com as nossas dimensões, embora falando uma só língua e sem dialetos, o que já é um milagre, temos expressões idiomáticas próprias de uma região ou estado que são totalmente desconhecidas em outras paragens. Algumas, até, de péssimo gosto e consideradas ofensivas.

Na zona do “cerapião”(Ceará, Piauí e Maranhão), chamar um homem de “cabra ruim ou cabra de peia” é o mesmo que puxar a peixeira e pular no terreiro. É chamar pra briga. Nordeste é terra de cabra macho, cabra da peste da rede rasgada e do mororó cinzento, do raio da silibrina e de cabelo nas ventas. Verdade que isso tem sido atenuado nas últimas décadas, mas não deixou de ser uma desfeita.

Eu viajava de ônibus de Teresina para Salvador, numa época em que não tínhamos smarthphones, celulares, Tv nem música a bordo e isso fazia as longas viagens ainda mais monótonas.

Nesse dia, quando ultrapassamos a última porteira mafrense, um dos passageiros que estava no fim do transporte resolveu contar “piada de piauienses.” Contava para seu colega ao lado, mas com o sucesso que foi fazendo, passou a contar mais alto, de forma que todos pudessem ouvir.

Os passageiros começaram a se divertir com aquilo e as gargalhadas ecoavam de cabo a rabo. Era evidente que os chistes não tinham o propósito de avacalhar com o estado ou com sua gente, entretanto, eu estava visivelmente incomodado e só passei a me divertir, quando notei que um senhor que estava à minha direita parecia muito mais chateado que eu. Ficamos sabendo depois que seu nome era Virgulino e esse nome impunha respeito.

Virgulino era um homem espadaúdo, de pele escura e olhos verdes, que tinha, aproximadamente, 1,95m de altura e uns 95 quilos de tendões de aço e concreto, um biótipo todo proporcional. Sua massa corpórea não se acomodava confortavelmente na poltrona. Comparando-o com o contador de lorotas, teríamos, novamente, um Golias diante de um David, só que, dessa vez sem funda, sem pedras e sem Iahweh. Caso acontecesse um confronto, não daria zebra novamente não...

Numa dessas incríveis coincidências, David – era esse mesmo o nome do contador de piadas – que estava cada vez mais empolgado, dava um jeito de distorcer todas as anedotas e mesmo que tivessem acontecido no Rio Grande do Sul ou na Cochinchina, ele fazia de conta que tinha acontecido no Piauí.

Também arranjara um jeito de colocar um bode em cada história. Contou que tinha passado um mês em Teresina e só tinha comido carne de bode, porque não tinha outra carne no mercado. Em trinta dias, apenas uma vez tinha comido fígado e, mesmo assim,

de bode...! Disse que, de tanto comer bode, já andava berrando.

Enquanto os passageiros se acabavam de rir, Virgulino ia ficando cada vez mais emburrado. Até eu também já estava rindo de tanta besteira, mas ele não parava.

Contou que uma das qualidades dos piauienses era não ter noção de distância. Caso alguém perguntasse, por exemplo, onde ficava o prédio do I.N.S.S., o piauiense responderia de cara:

– Vixe, é longe...!

Tudo era longe, mesmo que o tal prédio estivesse na esquina da frente. Contudo, se o cabra respondesse que era “bem ali” e esticasse o beiço (lábio inferior), você iria andar umas dez léguas... Talvez porque bode fosse um bicho que andava demais!

Não me recordo bem da hora em que chegamos a Capim Grosso, na Bahia, onde faríamos a refeição. Não existia ainda esse terminal rodoviário bonito de hoje e sim, uma pensão que recebia os ônibus da rota. Foi aí onde o caldo entornou de vez...

Alguma coisa me dizia que a tragédia estava montada e que eu deveria ficar bem distante de Virgulino e David. Cuidei de não contrariar a minha intuição.

David desceu na frente e tomou posição numa das primeiras mesas. Virgulino desceu depois, passou por David e se assentou de costas pra ele, três mesas depois.

Foi quando David resolveu contar sua última piada:

– Pois é...e por falar no Piauí, ó terra de cabra ruim!...

Eu gelei. Senti um frio descendo pela espinhela, ao olhar pra Virgulino, no exato instante em que ele levantou a mão direita espalmada, que mais parecia uma pá, e bateu com força extrema sobre a mesa. Os pratos balançaram e os talheres chacoalharam no ar, enquanto ele se levantava com a agilidade de um touro.

De repente, fez-se um silêncio ensurdecedor, de forma que dava pra ouvir as batidas cardíacas dos dois oponentes. Estava na cara que a merda ia ferver de qualquer forma. Naquele coliseu romano, tive a nítida visão do leão faminto diante de sua presa.

Os dois estavam a uma distância de, aproximadamente, cinco metros, enquanto os circunstantes, hirtos e imóveis, permaneciam atentos.

David começou a passar por uma metamorfose cromática bignoniaceae: ora ficava branco, ora roxo, ora amarelo. Foi quando Virgulino disparou:

– Calma lá, senhor! Até agora eu suportei calado, engolindo a seco suas gozações, seus despropósitos e suas piadinhas desrespeitosas. Ao que parece, o senhor desconhece os limites da decência e dos inconvenientes... Fiquei quieto, porque o senhor estava se referindo aos bodes, mas agora chega! O senhor não tem moral para falar das cabras. No Piauí, uma cabra pesa 80 quilos e dá 20 litros de leite por ordenha; já outras dão o queijo pronto. Para seu governo, o Piauí é terra de cabra boa, sim senhor!

Dito isso, sentou-se suavemente à mesa. De repente, todo aquele aparato de terror prorrompeu-se num circo dos mais diferentes sons de gargalhadas, transformando em festivo o que antes parecia tétrico e em alívio o que era caótico.

Durante o restante da viagem, David não contou mais anedotas. Parecia que sua carreira de comediante tinha se encerrado ali, precocemente. E os passageiros, por sua vez, agora, se divertiam por conta própria.

Moral da história: Cada um defende aquilo que lhe pertence. Na verdade, Virgulino era criador de cabras na região de Campo Maior do Piauí.

São coisas de minha terra.