MUITO ALÉM DA IDADE. 

- Dr, estou com problemas. Hoje eu pensei.
- Hummmmm....
- Foi assim como que quase do nada...
- Mas a Senhora não pensava antes?
- Não, acho que não, doutor...
- Mas todos pensamos...
- Acho que eu não!
- Como assim?
- Eu só tinha lembranças.
- Lembranças de quê ?
- Do que faltava na cozinha, do capítulo anterior da novela, no mau-humor do meu chefe... essas coisas, doutor. Isso não é pensar? É?
- É o normal entre as pessoas. Ninguém fica pensando em coisas completamente diferentes do que a Senhora chama de lembranças.
- Hãann...
- Então é só isso que preocupa a Senhora?
- É e não é, doutor.
- Mas a cada consulta a Senhora vem aqui achando que tem algo grave, e nunca é tão grave o que a Senhora conta. 
- Pois é doutor, é isso.
- Isso o quê?
- Nada de grave no que eu conto, não é?
- Sim. Não estou entendendo...
- Foi aí que eu pensei, doutor.
- Pensou ou lembrou?
- Pensei!
- E pensou o quê?
- Pensei que eu não penso.
- Como?
- Doutor, eu não penso, eu só lembro. Quem lembra não pensa. Só lembra. Lembra de tudo que ensinaram, mas não pensa que pode ser diferente...
- Diferente como assim?
- Diferente de como deveriam acontecer as coisas. As coisas da vida. Se eu não comprar as coisas que faltam na cozinha, a novela não passar, eu chamar o meu chefe de palhaço porque ele tem mau-humor, essas coisas...
- Mas por quê a senhora pensou justo nisso?
- Esse é o problema, doutor...
- Huuum... Qual?
- Eu não sei o que fazer com o que pensei.
- Hãn...
- ...
- ...
- E então, doutor?
- Então o quê?
- Eu estou doente, não estou?
- Não, nada demais.
- Então não é grave?
- Não, não é. Eu vou lhe passar um remédio e a Senhora vai se sentir melhor.
- Remédio, doutor?
- Uns comprimidinhos...
- Mas o senhor nunca havia me passado nada, antes.
- É, mas acho que agora a senhora está um pouco cansada.
- Não, doutor. Eu estou mais descansada que nunca. Eu só quero pensar em como as coisas podem ser diferentes das que acontecem...
- Hãn, sei.... Olha, além desses comprimidinhos, eu vou pedir que a Senhora consulte esta especialista aqui. Vou anotar na receita.
- Especialista em quê, doutor?
- É uma pessoa que poderá entender melhor esses sintomas da Senhora.
- Que sintomas, doutor?
- Esses de ficar pensando.
- Pensar é sintoma de quê, doutor?
- De cansaço, de stress...
- Ah, é?
- Sim.
- Eu pensei que era normal...
- Normal é. Mas no caso da Senhora...
- Quê tem o meu caso doutor?
- A senhora está numa idade que começar a pensar pode provocar desentendimento, entende?
- Não.
- É por isso que eu a estou encaminhando para essa especialista.
- E ela vai me ajudar em quê, doutor?
- No que a senhora deve pensar.
- Hãn. E o plano de saúde cobre essa especialidade, doutor.
- O seu eu não sei dizer. Mas geralmente os planos não cobrem.
- Ah, doutor, então o que tenho é grave mesmo!
- Não, grave não é. Mas é de se pensar.
- Puxa, doutor, se eu soubesse nunca teria pensado.
- Isso é normal. A gente acorda um dia e ...
- Oh, meu deus!
- Não se assuste. Com esses comprimidinhos toda manhã e a especialista a Senhora ficará bem.
- O senhor garante?
- Garanto!
- Ah, que bom. Se o senhor me garante eu vou lá.
- Então está certo. A Senhora retorna daqui há um mês.
- Não sei não, doutor. Vou pensar.
- Pensar em quê?
- Pensar em...

O diálogo entre doutor e paciente foi interrompido pela voz doce e meiga da enfermeira.

- Acabou a hora do sol! Vamos entrar, vamos entrar! Disse Zolma sorridente como se olhasse para crianças no jardim.

Enquanto isso o doutor de cabelos brancos e roupa de lã escondeu na meia o estilingue-estetoscópio e sua amiguinha com  mais de 80 anos guardou na sacola de tricô o pincel-microfone.

- Amanhã continuamos, tá bem? Disse ele.
- Sim. Mas antes vamos cantar e eu vou ser a Dalva de Oliveira.
- Vamos pensar, vamos pensar... Disse ele dando-lhe o braço para apoio.





Divina Reis Jatobá
Enviado por Divina Reis Jatobá em 28/06/2007
Reeditado em 07/07/2008
Código do texto: T544301
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