DALTÔNICO E ABSTÊMIO. PODE?

Não faz muito tempo que recém conhecido me dirigiu uma crítica, talvez, construtiva.

Disse que já tinha lido três contos meus, em que o protagonista, mesmo que às avessas, era minha pessoa. Sua impressão foi a de que falo em demasia de mim mesmo.

Em minha defesa, posso salientar que, se me ponho em destaque, sempre me descrevo em momentos e situações complicadas ou destrambelhadas do pretérito, e isso, longe de me categorizar como exemplo a ser seguido, só expõe meus desacertos. No entanto, como vejo as páginas literárias como um grande circo de variedades, faço dos contos meu picadeiro, e neles me sinto como o palhaço, que leva a sério suas patetices. Fazer outros rirem é uma virtude.

Ignoro tal conhecido e insisto em minha fragmentada e vexaminosa autobiografia.

Nunca fui preconceituoso, mas desde criança sou preconceituado.

Além de vegetariano, assunto sobre cujas agruras já tratei em outro conto, também sou daltônico e abstêmio. Isso sempre representou abacaxis a serem engolidos com casca e tudo.

Minha vida profissional, até pouco tempo atrás, exigia que participasse, regularmente, de eventos sociais, jantares, almoços e outros tipos de encontro, regados a acepipes. Convivi com beberrões contumazes (que sempre alegavam beber socialmente) e que, mesmo sabendo de minha aversão aos alcoólicos, insistiam em que os acompanhasse. Quanto mais alcoolizados, mais repetiam as ofertas, chegando a tentar me forçar a beber.

- Porque você não bebe? Religião? Promessa?

- Nada disso. Sou abstêmio.

- Ah, desculpe. Não imaginei. Já tentou algum tratamento?

- Meu avô também sofria disso, mas bebeu até o fim da vida.

Diante das duas absurdas assertivas, iria adiantar tentar explicar alguma coisa?

Cochichavam, ironizavam, olhavam com pena, talvez me imaginando em fase terminal. Quanto ao daltonismo, a coisa não era menos pior, pois a maioria achava que eu era cegueta, e só conseguia ver tudo embaçado, preto e branco ou de modo semelhante.

- Conheço um bom oculista, que talvez consiga diminuir seu sofrimento.

- Tadinho! Foi trauma de parto, foi?

Disso eu até ria, mas na hora de renovar a carteira de motorista a coisa pegava.

É claro que há exames para detectar casos de daltonismo extremo, em que o gajo pode ter problemas por não distinguir as cores dos sinais de trânsito, o que não era meu caso.

Porém, como não há um padrão muito bem estabelecido de avaliação, os peritos fazem os exames de vista e escolhem alguns, aleatoriamente, para avaliar, complementarmente, com os testes de cores. Sempre eu estava entre os alguns, como se tivesse a palavra “daltônico” estampada na testa. E os testes não eram reconhecer cores primárias, mas identificar misturas em novelos de lã e números ou letras, em meio a dezenas de bolas multicoloridas. Terrível!

Fui a um exame, acompanhado de minha mãe, que também ia renovar sua habilitação, e chegamos cedo, antes de outros ou do médico. Sobre a mesa havia tabuinha com novelos de lã coloridos e pedi à minha mãe que enunciasse as cores, que decorei (nenhuma primária). Ao começarem os exames, propositalmente, quis ficar por último, e nenhum dos oito que me precederam, passou pelo teste das cores, nem mesmo minha mãe, mas na minha vez...

- Sua vista está normal. Agora vamos ao teste de daltonismo.

Mesmo irritado, respondi às perguntas corretamente, quando ele exibiu a tabuinha. Mas, não contente, ainda pegou um grande livro, cheio de círculos com bolinhas coloridas, e daí não pude me safar. Não consegui ir além da primeira figura. Só escapei de uma reprovação, porque acertara a tabuinha, e ele concluiu que meu daltonismo era leve. Foi por pouco!

Quando saía do consultório, minha mãe ria e apontava para meus pés.

Só depois me informou que eu vestia uma meia azul e outra verde. Dá pra imaginar?

Fui, certa vez, a um festival, e queria comprar ingressos para um concerto. Dirigi-me ao balcão de informações, e a moça me indicou seguir a pista carmim, que chegaria à bilheteria (todas as pistas eram assim: malva, magenta, etc...). Disse-lhe que era daltônico, e, sorridente, sem entender do que se tratava, disse que então fosse pela pista violeta. Diante de minha total paralisia (pasmo), chamou um segurança, que informado do ocorrido, pediu desculpas e logo me orientou a conversar com o pessoal de apoio, no prédio “verde”, ao fim da pista “rosa”.

Vermelho de raiva, olhei o céu cinzento e fui embora, com a cor do burro, quando foge.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 26/11/2015
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