Uma criança com o meu sorriso

Era só mais um dia comum. Na rua, eu não passava de uma das milhões de garotas de vinte e poucos anos, mantendo uma rotina corrida entre a faculdade particular e um emprego no subúrbio que mal pagava as contas.

Como de costume, atravessava a mesma ladeira. O amontoado de casas, as poças de esgoto, as pessoas sempre encarando, o maldito terreno baldio, coberto por grade, que parecia um criadouro de galinhas... Tudo, exatamente tudo, estava como em todos os outros dias.

Podia jurar que o chefe não ia embora nunca. Saio às 19:30h, entretanto, quando fico sem trabalho, normalmente fujo do escritório às 17:00h. E da forma como sempre faço, peguei as chaves e ganhei as ruas de minha cidadezinha pitoresca ao colorir de um crepúsculo alaranjado.

Cabeça baixa, minha marca registrada, olhos no chão e fones nos ouvidos com a canção mais clichê da The Spill Canvas. Já estava quase retornando para a civilização do centro da cidade quando, sem perceber, ao passar pelo terreno amaldiçoado de sempre, ao invés do ciscar das galinhas, do cacarejar do galo, dos cachorros de rua revirando latas, fui surpreendida por um objeto desconhecido que fora arremessado contra a grade de proteção que envolvia os portões.

Estremeci. De duas, uma: Ou seria assaltada ou atacada por um cão feroz, as duas eram extremamente desagradáveis. A resposta? Nenhuma delas. Quando voltei os olhos para o monstro, ali, parado diante de mim, completamente coberto pela luz intensa do por-do-sol, havia um menino.

Tinha, no máximo, uns oito anos. Branco, cabelos ondulados, quase lisos até os ombros e negros como ébano, grandes orbes castanhas que se confundiam com todo o clima de início de outono, de bermudão e pés descalços. Por um momento, pensei em encará-lo carrancuda enquanto ele envolvia a bola surrada com os braços, no entanto, alguma coisa fez com que eu paralisasse.

Talvez fosse o fato de estar com sono e incrivelmente cansada naquele dia, ou, só não estava raciocinando direito mesmo, a questão é que, ao olhar pra ele, eu vi alguém a quem eu não tinha conhecido, mas tinha certeza de que pertencia a mim, às minhas lembranças, não passadas, porém, futuras.

Sorri. Foi tudo o que me fora permitido ao encontrar nele um pedaço de mim, ganhei de volta também um sorriso de alabastro, perfeitamente maroto, como o de um garoto travesso deve ser. Ficamos assim por uns segundos, um encarando o outro sorrindo. Ele não disse coisa alguma, eu tampouco. Mas algo em mim, naquela que jazia latente alguns anos a frente, disse que eu veria este cena novamente, que aquele momento era meu.

Retomei o caminho com certa estranheza. Cada milímetro andado era um passo a mais para dentro da escuridão das ruas. A noite chegou quando eu já estava perto de casa e muitas outras vieram desde então.

Aconteceu há alguns anos. Ainda faço o mesmo trajeto para o trabalho, vejo as mesmas pessoas, as mesmas casas, sinto o maldito cheiro de esgoto... Se voltei a vê-lo? Não. Nunca mais. Entretanto, é sempre que eu passo por aquele gradeado e ouço o som dos animais que espero tomar outro susto, receber outro sorriso.

O sorriso que pertence ao meu futuro, o sorriso capaz de salvar um dia.

Ladra de Tinta Seca
Enviado por Ladra de Tinta Seca em 01/02/2016
Código do texto: T5530614
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.