Posologia

Dalva não conseguia disfarçar e esconder as aflições provocadas pelo comportamento estranho do filho Crispim. Estavam consumindo suas energias.

O filho mais velho adotou um modo diferente de agir, até então relevante e salubre. Dalva imaginou que seria apenas uma fase. Curta e passageira. E brevemente perderia o encanto e abandonaria a forma inusitada que encontrou para viver.

Porém Crispim não desistia. Mostrava-se disposto. Decidido a continuar com aquela esquisitice, cuja mudança radical ganhava novas proporções a cada amanhecer.

Afrânio, homem honesto e pelejador, pai de Crispim e Doralice e marido fiel de Dalva, confiava na sanidade e boa índole dos filhos. Orgulhava-se por suas qualidades.

Doralice, com seus 12 anos de idade, era a caçula da família. Observadora e divertida, sorria demasiadamente diante das manias estranhas do irmão.

E Crispim, três anos mais velhos que a irmã, fazia de tudo para impressionar. Tentava ser diferente. Mudava de voz, deixando-a hora grave e outrora totalmente aguda. Degustava o dicionário e substituía palavras simples por outras requintadas e complexas que causavam mistérios na maioria dos seus ouvintes.

O jovem era motivo de comentário nas ruas e na escola. Diziam que ele não conseguia encontrar o som original de sua voz e nem tinha um repertório ortográfico coerente para sua idade.

E nos últimos 2 meses, todos notaram diferenças grotescas em Crispim. Nas atitudes e no palavreado. Se desconfiavam de sua identidade textual e comportamental, com o novo estilo, a situação piorou. E ele não deixava pistas para saber qual fase passava no momento. Se usufruía de linguagens antigas ou modernas. Algumas pessoas suspeitavam que ele teve a sorte ou azar de descobrir um pergaminho do período AC (Antes de Cristo) com orientações e resolveu segui-las à risca. Nada prejudicial a saúde, mas de certa forma, preocupante.

Dalva, diante daquela situação, precisava do auxílio de Afrânio. Aproveitou o momento de descontração costumeiro com o marido, logo depois do jantar, para inteirá-lo do caso. E entre uma conversa e outra, trouxe a tona aquele fato que a deixava preocupada:

- Afrânio, tem notado estranheza no comportamento de Crispim?

- Não! Aliás, qualquer estranheza vinda de Crispim é normal. Provavelmente é só mais uma daquelas fases onde ele busca o encontro consigo mesmo. Quando não encontra, volta pra realidade.

Dalva percebeu que Afrânio não deu importância para o caso. Ela insistiu:

- Concordo que ele tem dessas coisas. Mas agora é diferente. Há 2 meses ele está estranho. Abusa de palavras e comportamentos que desconheço. Estou preocupada.

Com os olhos fixos na TV, Afrânio apenas balançava a cabeça. Continuou a justificar que era coisa de adolescente. Acariciou a barriga, para mostrar-se satisfeito com a refeição enquanto Dalva, nervosa, passava as mãos nos cabelos. Ela continuou suas observações a respeito do filho:

- Você não sabe o que acontece. Acho que o Crispim necessita de ajuda. Talvez um médico.

- Ah Dalva... Você e suas preocupações chulas. Já disse que é coisa de adolescente. Depois a gente olha isto.

Afrânio voltou os olhos com veemência para TV. Dalva irritou-se. Trancou a boca e pressionou os dentes. Apertou os olhos bem fortes e deixou que a raiva, fruto do descaso do marido, transparecesse em sua expressão facial. E para completar o registro de sua ira, começou a bater a ponta dos pés no chão de madeira. Era o sinal explosivo de sua ira.

Afrânio percebeu a mudança no comportamento da esposa. Em todo o ambiente. Conhecia bem sua companheira de anos. E não tinha dúvida que quando ela se trancava daquela forma, o mundo naquela casa se dividia. Ela ficava sem trocar palavras com ele. Ele sofria. Ela não sentava na mesa para jantar em sua companhia. Ele sofria. Não assistia ao telejornal e escutava, mesmo que a contragosto, seus comentários ridículos sobre as notícias. Ele sofria. Além do rosto, ela dormia com o corpo coberto por um macacão jeans que ele detestava. Ela usava aquela peça de roupa toda vez que era contrariada pelo marido. E ele sofria.

Ao perceber que Dalva começava a entrar no processo de separação temporária, Afrânio resolveu dar importância aos questionamentos. Tratou de diminuir o som da televisão. Distribuiu a atenção entre as falas de Dalva e as cenas da TV. Para disfarçar, estalou os dedos e improvisou uma opinião para tentar trazer sua esposa de volta ao seu mundo:

- Você tem razão. Precisamos rever o comportamento de Crispim. Acompanhar de perto. Se ele está diferente, como diz, temos de tomar atitudes.

As estratégias de Afrânio deram certo. Aos poucos Dalva abria as portas do seu rosto e as janelas do seu mundo. Levantou-se de onde estava, do outro lado do sofá e aproximou-se de Afrânio. Encostou carinhosamente a boca no ouvido do marido, com o intuito de falar-lhe baixinho e evitar que os filhos ouvissem a conversa:

- Além do palavreado complexo ele adotou ações estranhas. Nunca o vi desta forma. E está consciente em suas atitudes. Acho que está enlouquecendo. Falo sério! Posso provar!

Afrânio continuava a dividir sua atenção entre a TV e Dalva. Sabia fazer aquilo bem. Porém, ao perceber que a situação parecia preocupante, tirou todo o som da TV e passou a escutar somente a esposa, se contentando apenas com as imagens em movimento. Queria mais detalhes. Ela revelou:

- Não deve ter notado, mas tem uma garrafa d’água na geladeira com o nome de Crispim.

- Sim, isso eu vi. Inclusive com data de fabricação e validade. Não entendi, mas considerei uma brincadeira dele.

Dalva sinalizou com a mão aberta para que ele esperasse um pouco. Levantou-se do sofá e foi até a porta da sala certificar-se que ninguém ouvia a conversa. Caminhou a passos lentos pelo corredor onde ficavam os quartos de Crispim e Doralice. Fitou o relógio e viu que marcavam vinte e duas horas e alguns minutos.

De forma sucinta, ela aproximou o ouvido na porta do quarto de Crispim. Notou que somente o ronco alto quebrava o silêncio. Fez o mesmo no quarto de Doralice. Abriu a porta vagarosamente e viu que a filha caçula assistia a clipes na TV. Estava tão envolvida com as cenas que nem percebeu a rápida presença da mãe.

Pisando macio, Dalva voltou para a sala e sentou-se ao lado de Afrânio. Continuou a relatar o caso do filho:

- Então, como havia dito, sobre a garrafa d’água, ela tem um furo no bico. É só levantar a tampa e verá. Foi o Crispim mesmo que fez o buraquinho.

Afrânio franziu a testa e balançou a cabeça com sinal de negativo e a face irônica. Muitas vezes se divertiu com as artes do filho. Curioso, aguardou calado mais detalhes de Dalva. Ela explicou:

- Quando ele vai tomar água, conta as gotas enquanto enche o copo. É uma tormenta assistir aquela cena.

Dalva baixou a cabeça e Afrânio permaneceu em silêncio. Aguardava ansioso mais explicações da esposa:

- Com a comida é semelhante. Ele coloca sempre a mesma quantidade. Quatro colheres de arroz. O feijão é medido no copo e sempre a mesma miligrama. E as carnes, ele pesa numa pequena balança de bolso.

Afrânio ameaçou sorrir. Dalva percebeu e fechou a sua face. Logo ele se refez. Roeu a garganta e soltou uma leve tosse. Se recompôs em seriedade. Desligou a TV e decidiu dar total atenção a Dalva. Desculpou-se por insinuar que as atitudes estranhas de Crispim fossem irrelevantes. Disse que averiguaria gota por gota daquela história.

A mulher continuou serena e sentiu-se mais calma. Sabia que apesar dos tons de ironia, o marido estava disposto a colaborar. Ela relatou mais uma estranheza de Crispim:

- Ele calcula com precisão os intervalos entre uma refeição e outra. Já realizei alguns testes. Adiantava ou atrasava. Ele não se alimenta nem antes e nem depois do tempo calculado.

- E se o almoço não tiver pronto e o jantar estiver na mesa antes da hora?

- É isso que quero explicar Afrânio! Se não tiver nada pronto, ele come o que tem. Sem abandonar a medida correta. E se ficar pronto antes da hora, ele não come. Se ficar frio, ele esquenta no micro-ondas. Está cada dia mais difícil.

Afrânio deslizou as mãos pelo rosto e alisou a barba que decorava o seu queixo. Arriscou um palpite:

- Bom garoto! Paciente, determinado e precavido. Será um excelente administrador, empresário ou investidor. Não vai tolerar atrasos e nem correr riscos.

- E você entende alguma coisa destas profissões?

- Um pouco hora! Sei que eles tentam tomar as melhores decisões, mesmo que possam contrariar um e outro. Além disso, exigem que respeitem os horários. Pontualidade! Acho que Crispim já escolheu sua futura profissão.

Decepcionada, Dalva cruzou os braços. Respirou fundo e começou a balançar a cabeça. Preparou para levantar do sofá e deixar a conversa com Afrânio de lado. Achou melhor procurar outros meios.

Ela ergueu o corpo e iniciou os primeiros passos para sair da sala quando Afrânio novamente pediu desculpas. Justificou que era somente um conceito mirabolante e mesquinho. Nada oficial. Pediu calma. Sentasse e explicasse mais detalhes. Ela concordou, mas não abandonou a expressão triste pelo descaso . Mesmo assim continuou a expor os problemas do filho:

- Outro dia ele me viu nervosa. Pediu que ficasse tranquila senão poderia criar lesões psicológicas agudas com danos prejudiciais ao corpo. Acho que foi assim que ele disse. E alertou-me, com voz autoritária, que não era indicado tomar medicamentos sem consultar um médico. E eu só estava nervosa porque vi o aumento exorbitante do preço do gás de cozinha. Só isto!

Após o relato, Afrânio prendeu o riso. Bem que queria. Mas foi forte. Aguerrido. Continuou calado e paciente, ouvindo com atenção os comentários da esposa.

- Outro dia o Tião do mercadinho perguntou se nosso filho estava com algum problema. Até estranhei.

- O Tião? Por quê?

- Ele disse que o Crispim pediu produtos mastigáveis com aroma artificial de morango com baixo teor de açúcar.

- O Crispim disse isto?

- Verdade! O Tião achou tão bonito que anotou na última página daquela bendita cadernetinha verde que registra as nossas compras a prazo. E disse que quando fosse pedir mercadorias aos fornecedores, utilizaria os termos exposto por nosso filho.

Novamente Afrânio acariciou a barba. Estufou o peito e ergueu a cabeça. Olhou para Dalva e comentou:

- Desculpe Dalva, mas que orgulho. Você não pode negar que Crispim é muito criativo. É um gênio! É um…

- Não! Não é nenhum gênio! Estão é debochando do nosso filho. E estou preocupada. Não é normal. Se fosse somente as palavras bonitas e esquisitas, tudo bem. Mas o comportamento dele mudou. Entenda isto!

Dalva suspirou forte. Sob o efeito do nervosismo, juntou as mãos e levou-as ao rosto. Foi tranquilizada por seu marido.

- Acalme Dalva. Não se preocupe. Vamos descobrir o que ocorre com Crispim. Daremos um jeito. Vou pegar um copo de água com açúcar.

Dalva tomou o líquido adocicado numa golada só. Trêmula, levantou do sofá e foi novamente até a porta conferir se os filhos estavam por perto. Ficou ali parada por alguns instantes até nascer uma ideia. E assim aconteceu.

Ela voltou com um sorriso moleque estampado nos lábios. Chegou bem perto do marido e compartilhou o seu plano:

- Já sei! Vamos vasculhar o quarto de Crispim. Deve ter alguma coisa que indique o porque deste comportamento.

Afrânio concordou. Considerou uma boa medida. Ela explicou os detalhes:

- Logo pela manhã, quando eles estiverem saindo para a escola, vou avisar que faremos uma faxina nos quartos. Ele não terá chance de esconder nada.

- Por que não fazemos isto agora? E por que o quarto de Doralice será vasculhado? Não vai dizer que ela também…

- Não! Doralice não tem nada de anormal. Isto é só uma estratégia para não levantar suspeitas sobre nossas intenções. E se formos lá agora, ele pode camuflar ou esconder alguma pista importante. Tem que ser feito pela manhã.

Afrânio sorriu e acompanhou o sorriso de Dalva. Ansioso, juntou as mãos e roçou uma na outra. E foram dormir tranquilos.

Noutro dia bem cedo, Dalva e Afrânio fizeram como combinado. Avisaram aos filhos sobre a falsa faxina e para surpresa, Crispim, seguro, não esboçou reação.

Assim que saíram, o casal correu para o quarto de Crispim. Ligaram o computador e conferiram os arquivos. Não encontraram nada. Vasculharam o guarda-roupa. Debaixo da cama. Do travesseiro. Começaram a abrir as quatro gavetas do criado-mudo de madeira em estilo colonial. E na última estavam as respostas para as preocupações de Dalva. Descobriram o porque daquele comportamento.

Crispim, com muito zelo, das quatro, reservou a última gaveta para a guarda de um amontoado de bula de remédio. E leu todas. Estavam marcadas com lápis e traziam anotações. E ele resolveu aplicar as orientações descritas nas bulas em seu cotidiano. Por isso suas refeições, bem como o consumo de água, tinham horário e dosagem.

Diante da descoberta, Dalva ficou estática. Não sabia o que fazer. Pediu uma sugestão ao marido. E ele avisou:

- Vamos conversar com ele. O bom é que não há vestígios de remédios. Só mesmo as bulas. E como os medicamentos perdem a validade, vamos exigir que Crispim dê as bulas um prazo. Caso contrário tomaremos outras medidas.

O casal fechou a gaveta e foram para a sala esperar o retorno do filho para iniciar a conversa. E decidiram que caso ele não mudasse, procurariam um médico. E exigir dele que seguisse corretamente o tratamento, as recomendações, respeitasse os horários dos medicamentos e as doses. E sabiam, por sua experiência, que não teria dificuldade em seguir as orientações.

Cláudio Francisco
Enviado por Cláudio Francisco em 12/03/2016
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