FOI ASSIM

Muitos anos atrás, muitos mesmo, o oceano Atlântico não existia.

Entre a África e a América do Sul tinha um buracão do tamanho de um bonde, seco que nem língua de papagaio.

O pessoal que morava em Pernambuco nessa época, plantava umas rocinhas de batata doce e de macaxeira para comer, de cana para fazer mel de engenho e cachaça, mamona para tirar o óleo para os alcoviteiros e para matar lombriga de menino buchudo, mandioca para fazer farinha... Essas besteiras mesmo que todo mundo planta.

Acontece que no lado da África, os neguinhos do Gabão com preguiça de plantar, atravessavam o buraco para roubar as roças do lado de cá.

Chegaram até a roubar umas cabrinhas boas de leite que um tal de seu Flor criava para fabricar queijo e vender carne de bode na feira.

Aí, como o pessoal não tinha a quem reclamar porque naquele tempo ainda não tinham inventado polícia, foi falar com o pajé dos caetés, um cabra velho que vivia lá para os confins de Olinda, socado na mata de Passarinho, depois do rio Beberibe, porque diziam que ele era um cabra arrochado feito buraco de brinco, que falava com os espíritos da mata, com gente morta, adivinhava o futuro, o diacho.

Era mais invocado do que fiscal de gafieira.

Quando o pessoal chegou e falou o que queria que ele resolvesse, o pajé fez um bocado de munganga, fumou umas folhas secas, bebeu um caldo grosso e verde que tirou de dentro de um aribé, revirou os olhos que ficou só o branco feito sanfoneiro cego, cantou umas loazinhas, deu uns estremiliques e quando passou o farnisim disse que a única maneira de evitar aquilo era enchendo o buracão com água.

Aí o pessoal perguntou como era que eles iam fazer isso porque a seca tava com a gota serena.

Fazia mais de cinco anos que não chovia nem um pingo.

O tempo até que nublava um pouquinho, mas logo logo o sol vinha com a peste no couro e tangia as nuvens para bem longe.

O pajé disse.

- Misture o Capibaribe com o Beberibe que resolve.

Aí os pessoal meteu os catalapos com enxada, com pá, com carrinhos de mão e com três dias de trabalho, fechou a saída do rio Beberibe, ali por atrás da Escola de Aprendizes.

O rio sem ter mais como sair, veio para os lados do Campo das Princesas e se misturou com o Capibaribe.

Aí os dois juntos, água como todos os diabos, em menos de um mês, encheram o buracão formando um açude grande como uma semana de fome.

Muitos anos depois botaram no açudão o nome de Oceano Atlântico.

Este texto foi produzido de forma a reproduzir a maneira de falar dos meus conterrâneos que não tiveram a oportunidade de frequentar a escola ou que, por comodidade, desprezam a forma culta da língua portuguesa, a mais melodiosa e bela das línguas faladas na atualidade.

GLOSÁRIO

Alcoviteiro = tipo de lamparina

Aribé = frigideira ou panela de barro

Arrochado feito buraco de brinco = diligente (no contexto)

Batata doce = Ipomoea batatas

Cabra velho = homem idoso (no contexto)

Caetés = indígenas da etnia Tupi, habitantes do litoral do Nordeste brasileiro.

Campo das Princesas = Atual Praça da República, bairro de Santo Antônio, Recife/PE.

Cana de açúcar = Saccharum officinarum

Catalapos = trabalho duro

Escola de Aprendizes = Escola de Aprendizes Marinheiros, bairro de Salgadinho, Olinda/PE.

Estremiliques = mal súbito, tremor, convulsão.

Farnisim = frenesi, estado de exaltação violenta que põe o indivíduo fora de si.

Gabão = País africano com a mesma latitude sul de Pernambuco

Gota serena = forte (no contexto)

Invocado = mal humorado (no contexto)

Loas = Conjunto de versos ou cânticos em louvor às divindades

Lombriga = Ascaris lumbricoides

Macaxeira/ Mandioca = Manihot esculenta

Mamona = Ricinus communis

Munganga = trejeitos

Pajé = Sacerdote tribal, elemento de ligação com a divindade era também o médico e o curandeiro, xamã.

Tamanho de um bonde = coisa muito grande.