SEBASTIÃO PRÍNCIPE

Era uma vez um príncipe. Não! Era uma vez “o” príncipe. Exatamente isso.

Seu nome completo era Sebastião Príncipe Souza Caju. Ele detestava seu nome.

No início, sua família o chama de Prince (achavam difícil pronunciar a palavra correta), Quando já estava nos seus nove anos, perguntou ao pai porque tinha olhos verdes, pele clara, se todo o resto da família apresentava a tez encardida, típica do cabloco, olhos escuros e mortiços. Rindo aquele sorriso desdentado a que Prince já se acostumara, o velho disse:

- Tu num é fio daquela que tu chama de mãe. Quem te pariu foi uma polaca formosa, quenga das boa, que trabalhava no Carrossel da dona Maria Renguinha.

- Entonces, meu pai, sô filho de quenga? E tu te deitava com ela?

- Não, fio. Sempre tive saco chocho, e acho até que quem embuchou tua mãe, pra ela formá cinco minina, foi Jão Bodinho, dono da venda. Eu só consertava as coisa das quenga.

- E o sinhô num si incomoda di sê corno? O Jão Bodinho deve di tá rindo disso tudo.

- Sei não. Faz quatro ano que num pago a conta da venda e ele num vem cobrá. Traz as compra direitinho, num incomoda e ainda me dá cachaça di graça. Foi um bão negócio. E tu, eu peguei pra criá, porque a coitada da tua mãe morreu de morte matada, novinha, a coitada.

Prince viveu mais um tempo, indignado com a situação, e começou a perceber que seus colegas e amigos sabiam da coisa, pelas brincadeiras, cada vez mais explícitas. Quando fez doze anos, resolveu sair de casa e de sua terra, sem avisar ninguém, montou na rabeira de um carro de boi desconhecido, último de uma caravana grande, e chacoalhou até adormecer. Foi com um safanão do boiadeiro que acordou, e, ainda zonzo, viu que ele lia sua carteira escolar, ria muito e mostrava pros outros caravaneiros. Jogou-lhe de volta, o documento, dizendo:

- De príncipe tu não tem nada, pirralho, mas já que escolheu pegar carona, vai trabalhar pra mim até pagar a viagem. Teu nome, agora, vai ser Tião Caju.

Foi um tempo de quase escravidão e maus tratos, em que carregava pesados fardos, quase sem descanso. Cresceu e encorpou, como resultado do esforço, mas não pôde mais ter acesso aos estudos, e se virava lendo o que lhe caía na mão, tentando não esquecer o que já tinha aprendido. Periodicamente, a caravana passava por uma fazenda, onde linda menina se afeiçoou a Tião, e não demorou a tomá-lo dos seus patrões, apesar dos protestos destes, por se tratar de filha de poderoso “coronér”. Sem poder apresentá-lo como pretendente ao seu pai, resolveu transformá-lo em negociante e capataz, ensinando-lhe tudo que fosse necessário.

Até seu nome ela modificou. Agora ele era Sebastian Souza Caju.

O rapaz, muito esperto, aprendeu tudo rápido, sobressaindo-se nos negócios e atraindo a atenção do pai da moça, que resolveu mandá-lo para uma feira de gado nos “States”, junto com a filha. Foi recebido com deferência e anunciado como Mister “Suza Queiju”.

- Que negócio é esse de “suja queijo”, Aninha? Caju já era feio, mas “suja queijo”?

- É a pronúncia deles, querido. Vou pedir que usem apenas o Sebastian.

Mas não adiantou. Havia muitos brasileiros ali presentes, e o Suja Queijo pegou.

Indignado com a zombaria, ele resolveu que não voltaria ao Brasil e tentaria se arranjar por ali mesmo. A menina, apaixonada, apoiou sua decisão e nem mandou mais notícias para a família, passando a viver com o garoto, apesar das dificuldades que foram aparecendo. Depois de passar fome, procurando emprego pra todo lado, seu porte e rosto chamaram a atenção de um fotógrafo, que o fez ingressar no universo dos desfiles de moda. Saiu da lama.

Transformou-se em Sebastian Suz, um exótico modelo “árabe”. Árabe?

O negócio era calar a boca, deixar os gringos dizerem o que quisessem e pegar a grana.

Ficou famoso e suas fotos rodaram o mundo, tanto que até o coronér ficou sabendo de seu paradeiro. Foi até lá, com seus jagunços de confiança, pegou a fia e deu parte do moço. A polícia gringa o prendeu para averiguação, notou que era clandestino, providenciou a devida deportação e, a pedido do velho, levaram-no para a cadeia do povoado, onde ficava a fazenda.

Ali passou muito perrengue, mas se impôs, com seu físico avantajado, e com o tempo, os outros presos passaram a respeitá-lo. Era o Bastião Souza, que ao sair da cana, conseguiu prosperar no comércio da cidadezinha, tornando-se cidadão eminente e requisitado.

Um dia resolveu visitar a cidade natal, e empertigou-se todo. Foi bem vestido, carro novo e mulher bonita, cabelo pintado, joias. Parecia político das altas esferas. Coisa rara no sertão.

Ao chegar no lugar em que vivera, tudo estava modificado, A casa nem existia mais.

Viu que a venda de Jão Bodinho ainda estava ali, do mesmo jeito que lembrava, daí resolveu ir tentar a sorte, perguntando pelo paradeiro da família. Encontrou o mesmo dono, que não o reconheceu e estranhou que alguém com aparência tão importante perguntasse sobre as pessoas em questão. No entanto, Bastião não queria revelar sua verdadeira identidade, porém insistiu no questionamento, oferecendo dinheiro em troca das informações. Ao ver as notas na mão do forasteiro, Bodinho logo destravou a língua, sem deixar nada de lado.

- Olha, Sinhô! Esse pessoar vivia sem eira nem beira, e o seu Mirto, que era o ômi da casa, teve um piripaque e se foi, logo dispoi que seu fio fugiu cos boiadeiro. A mulé e as cinco fia ficaram sem amparo, entonces truxi elas pra cá, cabei di criá i pus pra trabaiá. A casa já tava caindo, daí pus pra baixo e fiz um currar pros bode.

- E as meninas estão trabalhando onde?

- No carrosser da dona Maria Renguinha.

Não quis ouvir mais nada. Dirigiu-se ao bordel e chamou a cafetina, perguntando-lhe a quantia necessária para “comprar” as meninas. A mulher estranhou, fez todo tipo de rodeio, até que topou entregá-las por determinado preço. Sem se identificar, levou-as embora dali e achou que não poderia voltar a onde residia com elas, então tomou a decisão de se estabelecer em sua cidadezinha natal. Vendeu tudo que tinha, entregou uma parte à sua mulher, que ao saber de sua opção resolveu deixá-lo, comprou a venda do Jão Bodinho, deixou-o continuar como seu empregado, e pos todas as “irmãs” para estudar. Elas não entendiam o interesse que o homem tinha nelas, assim como todos os que as conheciam.

Bastião transformou a venda num supermercado, fez um pequeno hotel ao lado e logo começou a prosperar com os viajantes e caravaneiros, além do pessoal do vilarejo. Estava bem contente em poder dar uma vida decente às meninas, em poder ser bem sucedido em sua própria terra, mas onde grassa a ignorância e o atraso, a felicidade acaba sempre desalojada pela estupidez; e essa regra se manteve na sorte desse nosso personagem.

As garotas estudavam em cidade vizinha, numa boa escola particular, mas aconteceu que após um telefonema estranho e seco da diretora, o empresário foi convidado a comparecer à instituição, para urgente comunicação. Assim que lá chegou, a matrona o informou sobre as aprontações de suas protegidas. Não assistiam às aulas, furtaram coisas da escola e estavam se prostituindo numa parada de caminhoneiros próxima. Estavam, pois, expulsas da escola.

Sentindo-se mal, ele foi até o lugar indicado e as encontrou na pior das situações.

Seu coração não aguentou o baque, e a vida de Bastião Souza o abandonou.

Amedrontadas com a situação, as meninas chamaram Jão Bodinho, que tomou todas as providências para o velório e enterro. Ao fuçarem nas coisas do homem, encontraram aquela velha carteira da escola, de quando garoto, e descobriram sua verdadeira identidade.

Fizeram-lhe um belo túmulo e na lápide escreveram o seguinte epitáfio:

“ Aqui jazz o Prince, fio da quenga polaca, que ela chamava de Caju.”

Jão Bodinho assumiu o supermercado e o hotel, mandou as meninas de volta para o carrossel da Maria Renguinha e se tornou o mais importante comerciante da região.

Elas, quando podiam, visitavam o túmulo do “irmão”, levavam flores e “cajus”.

Volta e meia, quem visitasse o pequeno cemitério, ficava admirado em ver o jazigo com tantas flores e cajus a enfeitá-lo.

Como detalhe final, vale a pena mencionar que Príncipe detestava caju.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 29/05/2016
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