Esquizofrenia progressiva: (Reformulação)

Num dia qualquer, um senhorzinho incomum, cujas características poderiam facilmente passar pelas de um homem qualquer naquela recém-formada república socialista, resolveu ir ao médico. Sabe-se lá porque, mas aquele homem se sentia não muito suficientemente ortodoxo, e isso o incomodava, bastante. Não sabia ele se eram os grupelhos indecorosos que o faziam se sentir incomodado, ou se simplesmente estaria com alguma doença grave. Aquilo o deixava de cabelo em pé, o homem sentia medo de ferir com toda sua força os belíssimos princípios elementares do progresso que se instaurara, e isso o fazia sentir medo daquela situação. Sinceramente, aquele homem se sentia como um louco de dar dó. Então resolveu ir ao magnânimo e revolucionário sistema psiquiátrico soviético, para ver se não era ele a pulga no sapato que impedia o caminho para a importantíssima revolução socialista. Foi ao médico, e só de ver a cara daquele senhor todo delicado, mas que não escondia o metódico materialismo histórico dialético que o pertencia, ele se tremeu. Então, ao ver o médico ele já vou logo o contando tudo:

-Bom dia, Doutor! Sinto-me tão mal que acabei por vir aqui! A revolucionária militância desse país faz-me sentir como se todos fossem animais indecorosos, e isso me dá medo de não ser suficientemente ortodoxo, se é que me entende. Gostaria muito que o senhor soubesse que, não que eu não ame com todo meu coração e alma essa maravilhosa revolução, mas algo não faz eu me sentir bem.

O psiquiatra acabou por olhá-lo como com um ar de análise, por um tempo ele pensou em como analisar esse caso da forma mais marxista-leninista possível, sabia que esses casos não eram muito incomuns, e que o espírito contrarrevolucionário se alastrara indiscriminadamente sob o nome de uma nova doença, cujo nome poucos ousariam falar. Mesmo assim, ele continuou, friamente: — Conte-me mais sobre isso!

— Bem doutor! Sinceramente, eu gostaria muito se simpatizar com nossos camaradas da revolução feminina e negra, cujos respectivos movimentos clamam por igualdade, que mesmo dentro de uma revolução, é dura de ser conquistada. Sei que ser negro e mulher neste mundo hierarquicamente organizado de modo a ser patriarcal e opressor é muito difícil. Mas, conceitos como apropriação cultural, e cultura de estupro, levam a soluções que reduzem ao absurdo praticamente toda a ética revolucionária. Não me sinto como se isso fosse acabar em um lugar bom. Ás vezes, isso me dá o nefando desejo de reforma social, cujo impulso em realizá-la eu temo, muito fortemente.

Ao médico, isso soou como um profundo desabafo, ao menos, o materialismo histórico não tinha mais nenhum herege impenitente, ali se encontrava um caso que ainda poderia ser salvo. Isso o médico sentiu como algo bom. Ele falou:

– Percebo que sente-se dissociado do mundo real! Vejo que já está perdendo-se em devaneios, e isso é muito grave! Sente-se como um ser em profunda desconfiança de tudo e todo, projeta num temor de que a ética revolucionária seja desrespeitada a sua paranoia perante nossos irmãos revolucionários. Sente-se como um psicótico, eis os primeiros sintomas. Ao menos, ainda resta sobre si algo de realidade, percebe que seus sintomas não passam de gravíssimos problemas, certo?

– Sim, senhor! Gostaria de estar tratado, e logo. -Falou o paciente enquanto ouvia os aconselhamentos daquele doce psiquiatra.

– Seu desejo de reformar as regras sociais não passam de um desejo de concretizar sua dissociação do real, é bastante perceptível isso. Provavelmente, você escuta uma voz interior que diz que tudo está errado, trata-se de uma forte alucinação. Alguns não veem assim, percebem como se essa voz interior fosse algo que transcendesse a própria matéria, uma intuição divina, esses casos são mais graves. Como se sente em relação a essa descrição.

– É perfeita, senhor.- O paciente sentia um certo temor pela autoridade científica daquele brilhante médico.- Continue!

– Pois não! Certamente isso lhe faz temer as pessoas, afastar-se, não sente-se mais com vontade de relacionar-se com outras pessoas. Isso é o que chamamos de embotamento afetivo. Mas, no seu caso, tem cura. Provavelmente também anda tendo mudanças repentinas de humor, isso faz com que você reaja às ações revolucionárias com certa impertinência. Eis que ser reacionário é uma doença, senhor.

– Nossa! Parece que está me descrevendo.- A autoridade científica já hipnotizava o homem completamente.

– Disso tudo, só posso interná-lo!- Ele se entregou como a vaca ao abatedouro, tudo por um puritanismo da moral revolucionária.

Fim.

Eric Deller
Enviado por Eric Deller em 25/07/2016
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