Uma Ancoreta D’água por Quinhentos Réis.

Até 1942 o dinheiro do Brasil era o Réis e mudou pra Cruzeiro no Governo Vargas, com o primeiro corte de três zeros. Assim, Mil Réis (RS 1$000) passaram a valer Cr$ 1,00 (Um Cruzeiro). Ao que penso e isso é passível de erro, Mil Réis eram igual a Um Conto de Reis. Ainda hoje, se ouve ora por outra alguém falando: Quero dois Contos de Réis de carne... Cinco mil Reis de queijo... Dito isso, entenda que quinhentos Réis nada mais eram que cinquenta centavos de cruzeiros (Cr$ 0,50), hoje R$ 0,50 centavos de real.

Quando eu escrevi o causo O Boi Trombador disse que o animal havia matado uma das pessoas da procissão. Propositadamente omiti o nome da pessoa, já que isso provocara um desdobramento posterior.

Quando eu e meu tio retornamos da roça para casa e passamos no local da grande refrega, os homens estavam improvisando uma padiola com as próprias camisas para transportarem o morto. O desafortunado fora “seu” Manuca. Morrera pisoteado, exatamente por já mancar de uma perna. Não tendo agilidade para se defender e diante de um monstro de incomensurável rapidez, acabou perdendo a vida. Ele não gostava do apelido e às escondidas era chamado de “Manuca aqui tá raso, aqui tá fundo”.

Era um homem bom, muito melhor do que muitos que lhe foram enterrar o corpo. Seu defeito era visível, ao contrário de tantos que o tempo se encarregava de descobrir o caráter duvidoso. Trabalhava como eletricista de uma empresa que fornecia energia elétrica da cidade.

São Pedro do Piauí era uma cidadezinha acanhada, embora eu a amasse muito, como a amo hoje à distância. Não tinha água encanada e muito menos tratada. A energia elétrica era oriunda de um gerador a diesel que eu não sei a quem pertencia se ao município ao Estado ou a particulares. Certo era que durante o dia não havia energia. As luzes da cidade eram acesas das 18 às 22 horas. Às 21h50m ela ficava fraquinha por uns cinco segundo e isso era um aviso para quem estivesse acordado acender as lamparinas, candeeiros, petromax, que logo essa seria apagada de vez. Especialmente naquela noite, a luz ficou ligada à noite toda, até às 6 horas do dia seguinte. Estávamos em 1959, ainda não tínhamos televisão no Nordeste. De forma que todos dormiam cedo e no interior mais cedo ainda.

Para meu azar, esse homem morava de frente com nossa casa, o suficiente para que eu passasse a noite inteira sem pregar os olhos, como se não bastassem as conversas da rua completamente alheias ao acontecimento. Eu tinha medo de alma penada e o que dizer de uma alma penada que mancasse de uma perna! Ainda mais que em São Pedro do Piauí, onde diziam ter uma tal de “cruviana” que corria pela madrugada. Para o velório eu não iria nem amarrado, mas pela manhã estive lá para testemunhar uma das coisas mais histriônicas que se possa imaginar.

1958 foi um ano de inverno ruim. As perdas na lavoura foram imensas. Em 1959 foi até pior, as simpatias de precipitações de chuvas não nos davam bons augúrios. Sal em pedras colocado ao sereno amanhecia mais seco ainda. As nuvens no céu não formavam capuchos e estavam cada vez mais esparsas, mas se tem uma coisa que o sertanejo não perde é sua fé. Essa é nata, é tatuada em sua alma, ninguém “tira nem com tequila”. Ainda mais quando essa fé está centrada em São Pedro Apóstolo, que sempre andava pertinho de Jesus, tinha a confiança do Mestre que lhe fizera guardião das chaves das portas dos céus. São Pedro, padroeiro da cidade, não haveria de nos patrocinar uma desfeita dessas. Os dias amanheciam claros, sem uma nuvenzinha que fosse e lá para as três horas da tarde estava tudo abafado, um calor desesperado e as galinhas já nem ciscavam mais no terreiro. Era verdade que muitos já andavam desconfiados que ano que tem 5 e 9 não prestava mesmo, porque os noves fora é igual a cinco e cinco é primo. Ora, vá entender isso!. De madrugada era um frio danado e só anos depois que fui descobrir que frio era a mesma coisa que cruviana. O jeito era mesmo esperar!

Coronel Porfírio nunca fora militar, mas não sei por quais diachos esse povo rico de interior tinha a mania de se patentear com insígnias da caserna. Tinha uma fazendola logo depois do açude, na saída para Angical. Era do tipo “cheguei”, que estava longe de passar sem ser visto. Alto, branco, e andava sempre de branco. Usava camisas de mangas compridas sempre abotoadas nos punhos e apenas o botão do colarinho fechado. Tornava-se uma figura estranha, pois com o vento batendo, inflando-lhe a camisa, deixava-lhe a ideias de duas asas querendo voar e peito cabeludo a mostra, já que não tinha nada por debaixo. Comentava-se baixinho que era ateu o que não explicava a grande quantidade de compadres e afilhados. Talvez isso pra ele fosse apenas um ato social.

O enterro estava marcado para as 2 horas da tarde. Um pouco antes Coronel Porfírio chegou, meteu-se no meio do povo que estava na porta da casa, falou e abraçou todo mundo e foi direto pra onde estava o defunto espichado no meio da sala dentro de um caixão preto com dourados.

Eu ainda não entendi e nem perguntei o porquê muitas pessoas têm essa mania de amarrar os cadarços dos sapatos e entupir os ouvidos e as narinas do morto com algodão. Já avisei aos meus familiares que se fizerem essa palhaçada comigo eu vou espirrar! Pois bem, o Coroné chegou perto do caixão, tirou o algodão que estava numa das orelhas do morto e ficou pelo menos uns três longos minutos falando-lhe numa conversa de pé de orelha que ninguém entendia, mas que ninguém estava gostando, além de que aquilo era uma aberração sem tamanho. Depois disso recolocou o algodão de onde tirara e ainda lhe colocou alguma coisa no bolso da camisa. Feito isso, saiu e foi embora sem ir ao enterro. O comentário logo se espalhou da estapafúrdia maneira de conversar com um defunto, onde já se vira isso!

O Coronel havia depositado no bolso do morto um bilhete escrito a lápis num papel de carta, onde se lia com alguma dificuldade: “Compadre Manuca, estregue esse bilhetinho na mão de São Pedro, não vá se fiar em Sãobindito, mas eu acho melhor você falar diretamente com ele, cara a cara, pra evitar chamego. Quero que São Pedro me venda quinhentos réis de chuva das boas, daquelas que cada pingo enche uma ancoreta. Só não pago adiantado porque já estou cansado de ser enganado por esses santos de lá. É a água chegando e eu pagando a conta com ele lá na igreja.”

Isso criou os mais diversos tipos de comentários e recriminações que se possa imaginar, mas a verdade nua e crua e quase cruenta foi que, dois dias depois, sem quê nem pra quê, desabou na cidade um pé d’água sem tamanho e explicação. Estávamos no mês de maio de um ano seco, mas o certo foi que à noite seguinte ao dia do enterro, alguma coisa se vira notar na temperatura. A noite estava mais úmida e isso qualquer caboclo saberia divisar, soprava uma brisa mais forte e tudo acontecera na madrugada. A chuva descera sem economizar trovões e relâmpagos e cada pingo parecia uma pedrada. Da Rua Grande, hoje Marechal Rondon descia água como se fosse um rio no sentido transversal em toda a sua extensão. Nesse batuque foi até perto das 7 horas da manhã. Choveu o dia todo em ritmo brando. Foi chuva, como se dizia, de matar sapo; de fazer cavalo beber em pé... O que mais chamou a atenção foi que esse temporal aconteceu apenas no município de São Pedro do Piauí, pois não caiu uma só gota d’água nos municípios vizinhos. Algumas casas de taipas não resistiram e depois que a chuva passou o que mais se via era gente consertando os telhados. A lavoura que já estava quase toda perdida por falda d’água, agora se acabara de vez por excesso dessa. Aquele aguaceiro viera mais por castigo que por auxílio. Junho estava entrando de porta adentro e ninguém tinha milho pra comer nas fogueiras juninas. Estava mais do que claro que aquilo fora motivado pelo destemperamento do Coroné.

No dia seguinte formaram uma comissão de uns vinte homens, pra ir falar com o Coronel Porfírio. O prejuízo já estava sem remédio, não havia mais jeito a dar, mas pelo menos que ele não repetisse aquela maluquice. Meu tio foi um dos homens de bem relacionado para essa visita e eu fui de abiúdo, é claro.

Lá a conversa não foi das melhores e quase que sobrava pra mim também, pois onde tem menino e cachorro, gente grande não peida... O Coronel queria saber o que eu estava fazendo no meio dos homens! Depois de muitas contemporizações, o coronel mandou todo mundo dá meia volta e cambar cada um pra suas casas, que ele se sentia ofendido com aquela embaixada, ele iria descobrir quem tinha violado a correspondência dele e que isso não iria sair barato. Que era assunto dele e São Pedro e que ninguém se metesse a besta para ir peitá-lo em seu terreiro. Que o dinheiro era dele e gastava da forma como bem entendesse. Que ele já estava danado com aquela lenga-lenga e o primeiro que morresse ele iria mandar comprar dez contos de réis de chuva, que dessa vez nem Noé com sua canoa iria escapar...!

Na verdade, voltamos todos nós com os rabinhos entre as pernas e eu tomei essa de graça. A lição que todos tiraram foi de que a insolência não se curva diante de nada.

Eu estava lá, vi e conto.

São coisas de minha terra.

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 15/10/2016
Reeditado em 02/07/2020
Código do texto: T5792095
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