Contra-ataque

Miltinho dominava a bola pelo lado direito do campo um pouco a frente da intermediária. A bola chegava meia altura, ele podia dominar com a perna; optou por inclinar o corpo para baixo e fazê-lo com o peito.

Ela quicou vagarosamente no gramado bem a sua frente; ele, então, ergueu a cabeça. O cabelo suado caiu-lhe nos olhos; Miltinho tirou-o rapidamente com a mão direita. A bola quase inerte rodava lentamente no gramado sobre o próprio eixo.

O cronômetro marcava 23 minutos do segundo tempo e o placar registrava a vitória parcial do adversário em um a zero. O estádio estava cheio, levando em consideração sua capacidade. Era semifinal da Copa do Pantanal; principal campeonato da região. O time de Miltinho chegara ali com certa dificuldade. A decisão era disputada em um jogo apenas.

A média de público do campeonato era proporcional ao seu tamanho; não era televisionado; mesmo assim, corriam vários boatos de olheiros de grandes clubes que acompanhavam as partidas. Aquele jogo com certeza estava recheado deles. Era a chance de Miltinho.

O jogador era meio campista, e já tinha 23 anos, considerada uma idade avançada para dar certo no mundo do futebol. Ele havia passado por alguns clubes da região centro-oeste; todos de pequena expressão.

Miltinho também nunca frequentou divisões de base de grandes clubes; sua trajetória até ali fora envolta de escolinhas geralmente pagas, mas que, por identificarem certa habilidade no menino, o eximia das mensalidades.

Já com a bola dominada, um adversário aproximara-se para marcação; esse não vinha com intuito inicial de roubar a bola, tentava cercar Miltinho a fim dificultar suas opções de toque ou drible.

Miltinho pensou em tocar rápido, mas viu-se com poucas alternativas de passe. Resolveu então ameaçar um toque para trás, o marcador fechou com a perna direita, ele puxou a bola para si com a perna esquerda e depois deu um toque mais forte em direção à meta adversária.

Miltinho avançava quase rente a linha lateral direita. A maioria do time adversário encontrava-se no meio do campo; apenas a zaga estava recuada junto com alguns volantes a frente deles. O time de Miltinho tampouco estava no ataque, os dois atacantes começavam a avançar.

O marcador de Miltinho ficou para trás, porém, não deixou de persegui-lo; corria para tentar agarrá-lo. O jogador com a posse de bola aproximava-se rapidamente da área pela direita, tendo o marcador atrás e um zagueiro que o esperava na entrada.

Miltinho agora corria tocando a bola com a perna direita e desgrudava-se pouco a pouco da linha lateral. Ele chegou com muita velocidade na frente da área encontrando-se homem a homem com o zagueiro. Duas opções apresentavam-se; ou tocava para meio deixando os dois atacantes que chegavam de frente para o gol ou tentava um drible levando a bola até a linha de fundo.

Diante daquela oportunidade, a segunda possibilidade parecia-lhe mais apetitosa. Ele, portanto, mais uma vez ameaçou tocar para dentro, forçando o zagueiro a deslocar-se para a própria direita e cortou com muita rapidez em direção ao fim do campo.

Já dentro da área, Miltinho tinha apenas o goleiro a sua frente. Infelizmente faltava ângulo para a finalização, ainda mais ele sendo destro; sentia dificuldade em chutar no lado oposto do gol. Numa fração de segundo, parou a bola para que ela não saísse, ergueu a cabeça novamente e viu um de seus companheiros livres na marca do pênalti.

Não tinha jeito, deveria tocar. Ele já pedia a bola desesperadamente; era passar a bola e o empate estava consolidado; mas como? Estava tão perto de fazer o gol, de mostrar-se para os olheiros ou quem quer que seja. Sua jogada até o momento havia sido perfeita. Não poderia entregar o gol de “mão beijada”; tentaria mais uma vez.

O zagueiro driblado recuperava-se quando Miltinho deu um toque curto para dentro da área, assim ganhando mais espaço no gol. O goleiro flexionou as pernas e abriu os braços, dando pequenos pulinhos, pronto a se jogar.

Miltinho tomou posição de chute (com a esquerda mesmo) e quando iria concretizar o lance, o zagueiro pulou de longe com todas as travas da chuteira a mostra, acertando de raspão o pé de apoio do atleta.

O meio-campista, que como todos os jogadores de futebol, tem o dom da interpretação, caiu no gramado depois de uma pirueta espetaculosa e rolou gritando como se uma perna tivesse sido partida ao meio. Todos levantaram a mão pedindo o pênalti, que prontamente foi marcado pelo árbitro. Quase não houve contestação do time adversário.

Aquela imprudência do zagueiro foi providencial, Miltinho provavelmente não faria o gol, e o passe já não era possível, pois os jogares da outra equipe já estavam de volta à área. A sorte batia a sua porta. A bonita jogada rendeu-lhe a penalidade; tinha que fazer o gol.

Miltinho levantou depois de mais alguns instantes de teatro; foi atrás da bola e a colocou debaixo do braço. A cobrança era dele, ninguém tinha direito maior sobre a batida. Enquanto todos se organizavam, o jogador concentrava-se ao lado da marca olhando fixamente para o travessão.

A hora chegara; o resto dos atletas se encontrava atrás da linha da área. O árbitro do seu lado esquerdo fiscalizava pela última vez o posicionamento de todos em campo. O goleiro, com os braços abertos, andava como um caranguejo de um lado ao outro do gol. Miltinho mediu com o pé esquerdo o onde pararia para chutar; deu três passos largos para trás e esperou a autorização. O juiz apitou.

O batedor respirou fundo e correu para bola. No momento da batida virou o pé para fora e tocou de chapa no canto direito do gol. O goleiro escolheu o canto contrário; no meio do pulo pareceu ter desistido; a bola já havia entrado; ela bateu na “bochecha” da rede, alta; indefensável.

O grupo todo foi abraçar Miltinho que corria de encontro à marca de escanteio. Gritava muito e saltava dando socos no ar. Estava radiante; aproveitara a chance que tivera. Empatou o jogo e ainda de quebra abriu a possibilidade de ter encantado algum olheiro.

O jogo foi retomado em meio à euforia do empate. O time de Miltinho corria mais; agora acreditava de fato na chance da virada e de uma inédita final. Os atletas gritavam, gesticulavam, pediam o máximo de atenção.

Na verdade a partida era sofrível técnica e taticamente. Apesar de estarem disputando uma semifinal, qualidade era um adjetivo que passava longe daquela peleja. A marcação era pesada, a bola ficava embolada no meio de campo; pouquíssimas chances eram criadas. Assim o jogo se desenrolou até os 44 minutos do segundo tempo.

Nesse minuto, um chute de longa distância do atacante adversário acertou o ângulo esquerdo do gol. O chute foi de uma felicidade rara; daqueles em que bola muda várias vezes de direção no trajeto. O goleiro nem pulou.

Os três minutos de acréscimo só serviram pra torturar Miltinho. Ele não acreditava que seu time chegou tão perto da classificação e ainda mais com um lance de sua autoria. Antes do apito final o rapaz já chorava.

Ele sabia que a derrota, da forma que foi, apagaria sua jogada. Dificilmente alguém se lembraria de um gol de pênalti feito pelo time perdedor, mesmo que esse se originara da mais bela jogada. A certeza de Miltinho concretizou-se, ninguém o procurou.